Fórum de Desenvolvimento Sustentável das Cidades discute caminhos para o enfrentamento de eventos extremos nas metrópoles
Por Florência Costa, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Deslizamento de encostas sobre casas em Recife durante temporal no fim de maio: debate no Fórum do Desenvolvimento Sustentável das Cidades discute adaptação à crise climática (Foto: Diego Nigro / Prefeitura do Recife – 29/05/2022)
As cidades estão na linha de frente da crise climática e, por isso, os próprios municípios lideram o debate dos efeitos da mudança climática e o que precisa ter feito para enfrentá-la. Noventa e sete megacidades do mundo já reportam algum forte impacto da mudança climática. No Brasil, mais de 800 pessoas morreram, desde dezembro de 2021, devido a eventos climáticos extremos.
Esses dados foram discutidos por especialistas e gestores municipais durante o debate “Como uma cidade enfrenta as mudanças climáticas?” no sábado, 9, dentro da programação do I Fórum de Desenvolvimento Sustentável das Cidades, organizado pelo Instituto Cidades Sustentáveis (ICS). O evento faz parte da Virada ODS, que reuniu gestores públicos, acadêmicos e organizações da sociedade civil e do mundo corporativo, e foi realizado no Pavilhão do Parque Ibirapuera, em São Paulo.
Temos 97 megacidades no mundo e todas já reportam alguns desses impactos climáticas. As cidades estão na linha de frente dessa crise e, por isso, muitas vezes os municípios tem liderado o debate
Ilan CupersteinVice-diretor regional para a América Latina da Rede C 40vice-diretor regional para a América Latina da Rede C 40
Um dos debatedores, Para Ilan Cuperstein – vice-diretor regional para a América Latina da Rede C 40, que reúne megacidades mundiais comprometidas com ações relacionadas à mudança climática – afirmou há duas formas pelas quais as cidades enfrentam essas mudanças: mitigação e adaptação.
Ele explicou que, no caso da mitigação, três fatores contribuem mais para as emissões. O primeiro fator, segundo ele, é o transporte público. Esse, aliás, é a maior causa de emissões da maioria das cidades latino-americanas, já que seus sistemas de transportes são majoritariamente rodoviários.
O segundo tema nos inventários climáticos, de acordo com Cuperstein, é o uso da chamada energia estacionária, que não inclui mobilidade, como elevadores, ar condicionado etc. E o terceiro fator são os resíduos, cuja quantidade gerada nas cidades é enorme. “São Paulo, por exemplo, gera 20 mil toneladas de resíduos diários. O Rio de Janeiro gera 10 mil toneladas diárias”, exemplificou.
A parte da adaptação é importante, segundo ele, devido ao aumento na intensidade e na frequência de eventos, como ondas de calor, deslizamentos, aumento do nível do mar, enchentes, secas. “Temos 97 megacidades no mundo e todas já reportam alguns desses impactos climáticas. As cidades estão na linha de frente dessa crise e, por isso, muitas vezes os municípios tem liderado o debate. Muitas vezes os estados não tomam as atitudes necessárias e os prefeitos se mostram mais conscientes da urgência das questões climáticas”, informou.
Ilan Cuperstein deu o exemplo de um projeto que a C40 desenvolve em conjunto com a prefeitura de Bogotá, capital da Colômbia, para demonstrar que a questão climática não está isolada de outros problemas nas cidades. Sua organização esta ajudando a prefeitura de Bogotá a implantar uma linha de ônibus elétricos que serão dirigidos só por mulheres. “O clima não pode ser olhado de forma isolada. Essa política de Bogotá não foi feita como uma ação puramente climática, apesar de acabar sendo. Foi feita como política de inclusão de gêneros e de promoção de empregos em um momento de crise econômica”, observou.
O Brasil tem 66% de cobertura florestal, mas o nosso índice de áreas verdes nas regiões urbanas é muito menor do que de outros países da América Latina e da Europa
Tasso AzevedoCoordenador do MapBiomas
Segundo ele, emissões de transporte público podem cair até 80% com o uso de tecnologia elétrica. Outro exemplo destacado pelo representande da C40 é o da construção da maior fazenda urbana no Rio, em Manguinhos, uma das áreas mais pobres da cidade, no meio de uma favela. “Todas as pessoas que trabalham lá são moradores da região e esses alimentos são doados para moradores da comunidade. Se as políticas climáticas não forem pensadas dessas forma, ou seja, na sua integralidade, elas não vão dar certo”, ressaltou. Para ele, a questão climática é política e coletiva. “Pensar na individualização da questão climática é uma armadilha, embora a ação individual seja importante. A ação coletiva se dá pela política”, constatou.
Cuperstein afirmou que as chamadas cidades do futuro devem ser “agradáveis, não hostis, com transporte público que acesse as diferentes partes da cidade, com sombras, com áreas para se caminhar”. Um bom começo para preparar as cidades no enfrentamento de problema climático, de acordo com ele, é trocar o foco do transporte individual para o coletivo, melhorar a eficiência energética dos edifícios públicos e sobretudo tornar as cidades mais verdes e democráticas para toda a população.
Cidades desiguais
Coordenador do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (SEEG) e do MapBiomas, Tasso Azevedo lembrou que o Brasil é desigual não apenas na questão social, mas climática também. “Temos uma imensa disparidade. Há municípios, como Altamira, com 350 mil habitantes, que emite mais do que o Uruguai inteiro, com uma população de 3.5 milhões de habitantes. Mas temos também municípios que emitem menos do que pequenas ilhas no Pacífico. Temos cidades que emitem menos de uma tonelada por habitante, quando a emissão média no Planeta é de 7 toneladas por habitante. Mas há cidades brasileiras que emitem mais de mil toneladas por habitante”, afirmou.
Essa mesma distinção que acontece também nas adaptações. Os impactos são muito desiguais no Brasil. Segundo o coordenador do MapBiomas, é preciso entender melhor as emissões por município, pensando em gerar soluções para mitigar as emissões de gás do efeito estufa e também uma segunda fase que é de adaptação. “Há 10 anos iniciamos o trabalho de calcular as emissões de gases do efeito estufa do Brasil a cada ano. Depois avançamos para fazer por cada estado. E agora fazemos quantificações das emissões para entender como elas funcionam nos municípios. Para cada um deles a gente tem uma estimativa da emissão devido a vários fatores, como energia elétrica transporte, indústria, tratamento de resíduos etc. A gente avalia 600 fontes de emissões. Produzimos um caderno que destaca 37 soluções que podem ser aplicadas nos municípios, independente das ações federais e estaduais”, informou Azevedo.
Somos uma das capitais mais vulneráveis às mudanças climáticas. Em cinco dias, choveu 600 milímetros em Recife, o equivalente aos dois meses mais chuvosos, que são junho e julho. Essa concentração trouxe mortes, desabrigados e desabamentos. Como não temos como parar a chuva, precisamos nos preparar para as próximas, que tendem a ser piores
Isabella de RoldãoVice-prefeito do Recife
Ele explicou que os eventos extremos climáticos estão aumentando muito na frequência, intensidade e no tamanho do impacto para as cidades. Uma questão fundamental para os municípios, de acordo com Azevedo, é pensar a gestão de reservatórios de água. Ele lembrou que a gestão de reservatórios no Brasil é federalizada e estadualizada, mas deveria ser pensada a partir dos consórcios municipais. “As gestões dos reservatórios é absolutamente essencial para as cidades, seja no período de chuva ou no de seca. Uma ação que seria importante é eletrificar todos os prédios públicos com painéis de energia solar. É uma forma de salvar os reservatórios de água”, explicou.
Outro tema importante nas gestões municipais, segundo Tasso Azevedo, é a necessidade de esverdear as cidades. “O Brasil tem 66% de cobertura florestal, mas o nosso índice de áreas verdes nas regiões urbanas é muito menor do que de outros países da América Latina e da Europa. Isso é muito importante porque afeta diretamente o nosso consumo de energia”, disse.
Para Azevedo, a ação individual nessas direções são importantes porque a ação coletiva acontece a partir de tomada de decisões individuais. “Aquilo que a gente faz no nosso dia-a-dia molda os nossos hábitos e o hábito molda o nosso comportamento, que por sua vez é responsável por mais de 90% do nosso processo de decisão”, completou.
Rodrigo Corradi, secretário executivo adjunto do ICLEI- América do Sul – principal associação mundial de governos locais e subnacionais dedicada ao desenvolvimento sustentável – disse que o primeiro passo desse desafio é trabalhar a sensibilização das pessoas. “Não é um processo fácil, é um processo político, de construção, de validação democrática. A cada quatro anos a população das cidades pode identificar um outro caminho político. Mas temos a lógica científica e os dados a nosso favor”, afirmou. Para ele, a melhor maneira de trabalhar esse caminho é a apresentação da realidade que se impõe. Corradi disse que mais de 800 pessoas morreram no Brasil devido a eventos climáticos desde dezembro do ano passado.
O planejamento e o orçamento municipal são fundamentais no enfrentamento da questão climática, explicou ele. “Temos de trabalhar o planejamento dos municípios, ou seja, a capacidade que a gestão municipal tem de orçar o seu fôlego de investimento através de uma ótica que traga a perspectiva climática. Caso contrário, estaremos falando de ações isoladas que não tem capacidade de serem realmente a mudança de toque na implementação de políticas públicas”, ressaltou Corradi, lembrando que o Brasil é um dos países mais urbanizados do mundo. “Com 5.570 municípios, é preciso levar as políticas públicas também para o interior. É preciso capilarizar a pauta da mudança climática através de ações que cheguem nos pequenos e médios municípios”, observou o representante do ICLEI.
Ameaça climática
Para a vice-prefeita de Recife, Isabella de Roldão, a pauta da urgência climática deixou de ser a do politicamente correto para se tornar a do extremamente necessário. “Não dá mais para passar batido pelo debate das emissões de gases do efeito estufa. É preciso despertar a consciência porque tudo que consumimos gera lixo”, disse. Primeira mulher a ocupar o cargo de vice-prefeita no Recife, Roldão destacou que a mudança climática tem raça, gênero e classe social. “Seus efeitos afetam mais as mulheres, negros e pobres”, afirmou, lembrando as fortes enchentes de junho deste ano na cidade.
Recife abriga uma população de 1 milhão e 600 mil pessoas e quase 70% de seu território geográfico é formado por morros. A cidade é toda cortada por rios: “Somos uma das capitais mais vulneráveis às mudanças climáticas. Em cinco dias, choveu 600 milímetros em Recife, o equivalente aos dois meses mais chuvosos, que são junho e julho. Essa concentração trouxe mortes, desabrigados e desabamentos. Como não temos como parar a chuva, precisamos nos preparar para as próximas, que tendem a ser piores”.
Ela destacou que as cidades brasileiras não podem mais dar pouca importância à questão climática. “Não dá para fingir que não vai acontecer nada. As políticas públicas tem de ter fundamento científico mas também devem ter seu foco na vida real”, afirmou. Isabella de Roldão recordou ainda que Recife foi a primeira cidade brasileira a decretar emergência climática, em 2019, e com isso foi possível incluir a disciplina Sustentabilidade e Urgência Climática nas escolas municipais.
Roldão deu um outro exemplo de ação rápida que pode ser tomada: a proibição de compras de plásticos descartáveis em certos locais da administração pública. No caso do Recife, foi assinado um decreto em início de 2021 proibindo qualquer aquisição de plástico descartável dentro do edifício da prefeitura, pelo qual circulam cerca de 5 mil pessoas diariamente.
A vice-prefeita da cidade fez questão de destacar que a pauta climática não afeta o desenvolvimento. “As pessoas que trabalham pela pauta climática não são contra o desenvolvimento da economia de jeito nenhum. O que a gente quer é que seja um desenvolvimento econômico harmônico. Queremos desenvolvimento urbano sustentável, queremos estímulo à mobilidade coletiva, queremos segurança porque é preciso trazer as pessoas de volta para a cidade, queremos respeito para todos nos os espaços públicos, independente de cor, gênero, classe social, e queremos compromisso com arborização das cidades”, concluiu.
Articulador nacional do Engajamundo – organização não governamental de jovens que tem como objetivo aproximá-los das decisões políticas do dia-a-dia através de conscientização e mobilização – Paulo Galvão ressaltou que é muito importante levar esse processo de mitigação e adaptação para o Brasil rural também. Nascido no Amazonas, mas hoje vivendo em São Paulo, Galvão disse que na verdade esse processo de adaptação já está acontecendo em áreas do interior do país. “Mas infelizmente nem todo mundo olha para o problema da mudança climática como deveria olhar. Isso acontece pela desinformação e também pela falta de políticas públicas que deveriam oferecer a informação adequada às pessoas”, afirmou.
Para Galvão, o investimento em educação ambiental também deve ser incluído nesse debate. “Com isso os cidadãos poderão vir a pressionar os governos e fazer a agenda necessária avançar”, disse, lembrando que os mais responsável pelas essas mudanças climáticas são os que menos sofrem seus efeitos. “Temos que pautar no Brasil a Justiça Climatica. Trata-se de uma discussão que vai muito além de políticas de mitigação, adaptação e de planejamento urbano”, acrescentou o representante do Engajamundo.