Por Fernanda Baldioti , compartilhado de Projeto Colabora –
Em 15 anos do ‘Oscar’ nacional, só 5% dos finalistas eram homens negros ou pardos. Nenhuma mulher negra foi indicada
Não é só Hollywood que vem buscando melhorar a diversidade na sua produção, preocupação que ficou evidente nas indicações e premiações do Oscar do último domingo. Como lá, o mercado cinematográfico brasileiro ainda é uma indústria protagonizada por homens brancos, como mostram dois importantes estudos recentes. As pesquisas e a pressão social em todo o mundo por condições mais igualitárias na indústria contribuíram para que, no edital publicado no início do mês passado, o maior da história do audiovisual brasileiro, o Ministério da Cultura (MinC) incluísse cotas para negros e mulheres.
“As cotas são um passo complementar de um esforço geral de ampliação da diversidade no mercado audiovisual brasileiro, que deve receber também projetos de capacitação profissional desses públicos (mulheres, negros, índios, LGBTs) em funções criativas, como direção, roteiro e direção de arte. E também tecnológicas, como cenografia, iluminação, efeitos especiais, sonorização etc. Isso faz crescer a demanda por recursos e a qualidade dos projetos que buscam essa representatividade”, afirma Christian de Castro, presidente da Agência Nacional do Cinema (Ancine).
Só para se ter uma ideia, um levantamento da Ancine, divulgado no fim de janeiro, mostra que 75,4% dos longas-metragens brasileiros lançados comercialmente nas salas de exibição em 2016 foram dirigidos por homens brancos. Já as mulheres brancas assinaram 19,7% dos filmes, enquanto apenas 2,1% foram comandados por homens negros. Nenhum foi dirigido por uma mulher negra.
Resultado bem semelhante foi aferido pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (Gemma), ligado à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), que também avaliou a diversidade de raça e gênero na produção nacional, mas focando nos 15 anos do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (2002-2017), organizado pela Academia Brasileira de Cinema. Na categoria melhor filme de ficção, os homens brancos assinam a direção de 81,9% dos finalistas e de 75% dos ganhadores. A segunda posição vai para as mulheres brancas, que têm 12,8% finalistas e levam 25% dos prêmios. Somados, homens pretos e pardos representam somente 5,3% dos finalistas, mas não levaram prêmio algum. Mulheres pretas ou pardas sequer aparecem representadas. Não que não elas não tenham produzido, mas esse material não chegou às grandes salas, e, consequentemente, ao grande público.
“Tem mulher e tem negro produzindo, mas, infelizmente, eles acabam circulando apenas em festivais específicos, como o Femina, só com filmes de mulheres, e o em homenagem ao Zózimo Bulbul, que reúne cineastas negros do Brasil, da América Latina e da África. Essas produções não encontram visibilidade dentro dos prêmios que já são mais conhecidos da sociedade como um todo e que, mal ou bem, acabam tendo mais recursos tanto públicos quanto privados”, afirma a pesquisadora do Gemma Marcia Rangel, que completa: “É claro que mulheres e negros têm menos oportunidades e produzem menos porque a questão da desigualdade é muito extensa e complexa. Mas também os curadores, geralmente, não estão sociabilizados com filmes feitos por mulheres porque estão habituados a ver sempre o mesmo tipo de representação, a determinar só um recorte específico à arte”.
Além da direção, a análise da Ancine apontou o domínio de homens brancos nas principais funções de liderança no cinema. Eles dominam o roteiro dos filmes de ficção, dos documentários e das animações brasileiras (100%); a direção de fotografia (85%) e a direção de arte (59%). As posições só se invertem nas funções de produção. Assinam a produção executiva 36,9% de mulheres brancas, contra 26,2% de homens brancos. Ainda assim, não há mulher negra assinando sozinha uma produção.
A participação nos elencos das obras também mostra a sub-representação da população negra: apesar de o país ser formado por 50,7% de negros, o percentual de negros e pardos no elenco dos 97 filmes brasileiros de ficção lançados em 2016 foi de apenas 13,4%.
“Para além da representação, queremos participação efetiva. Estamos a todo tempo questionando sobre o que os conteúdos audiovisuais estão falando, como estão abordando o que é dito e quem está produzindo esse conteúdo. As respostas a essas questões devem balizar a implementação e experimentação de alternativas que sejam efetivas na redução das desigualdades de gênero e raça. Por se tratar de um setor que vem se desenvolvendo a partir de políticas públicas, é fundamental e urgente construirmos um conjunto de Ações Afirmativas”, defende a cineasta Viviane Ferreira, que dirigiu “O Dia de Jerusa” (2014) e é presidente da Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (Apan).
No pacote de editais lançado pelo MinC, que somam R$ 80 milhões, ao menos 50% das iniciativas contempladas por cada edital devem ser dirigidas por mulheres, 50% por novos diretores, roteiristas ou desenvolvedores. Além disso, 30% caberão a realizadores do Norte, Nordeste e Centro-Oeste e outros 20% do Sul, Minas Gerais e Espírito Santo, enquanto 25% devem ser dirigidos por indígenas ou negros.
“O Brasil é um país de proporções continentais onde convivem muitas culturas. É preciso que haja essa regionalização da produção, difusão e distribuição do audiovisual. No entanto, temos que garantir a inclusão de gênero e raça nos editais para que as obras audiovisuais nos representem. A maioria da população brasileira é composta por mulheres e negras/os. Precisamos criar nossas próprias histórias, nossas próprias representações”, avalia a cineasta Tata Amaral, que dirigiu filmes como “Um Céu de Estrelas” (1997), “Antonia” (2009) e “Trago Comigo” (2016).
Tata festeja a visibilidade trazida à causa por movimentos como o #OscarSoWhite (que critica a ausência de artistas negros na premiação) e o #MeToo (contra o assédio sexual):
“Aqui no Brasil, também temos essa preocupação. Anna Muylaert, Laís Bodanzky, Marina Person, Caru Alves de Souza, Viviane Ferreira e as cineastas do movimento negro, eu, e muitas outras levantamos essa bandeira. Mas quando as atrizes abraçam a causa, ela ganha outra proporção”.
Marcia lembra que há iniciativas importantes no Brasil de promoção de um cinema mais plural, como o Cineclube Delas, que acontece no Rio de Janeiro e tem como foco produções de mulheres e feminismo, e o coletivo de críticas de cinema Elviras, que tenta mostrar que as mulheres podem ocupar com relevância essa posição nos jornais.
“A discussão já existe, mas, aqui no Brasil, ela ainda não tem tanta repercussão quanto essas grandes correntes do exterior que conquistaram notoriedade nesses últimos anos”, diz Marcia.
Para Christian, além das cotas e de iniciativas privadas, há que se contar ainda com esforços em termos educacionais fundamentais, como levar atividades cinematográficas e acervos a escolas públicas e incentivar a criação de cineclubes de comunidades e regionais. Assim, começaremos a habituar as novas gerações à produção audiovisual plural e em várias plataformas (filmes, produções para YouTube, séries de TV, documentários, animação, etc.).
Ele lembra que este estudo sobre 2016 foi o primeiro em que a Ancine apresentou recortes de cor e raça. A agência promete, a partir de agora, fazer um balanço anual. O de 2017 está previsto para ser divulgado em junho. “Assim teremos uma ideia melhor de como esta questão está caminhando e, a partir daí, afinar os instrumentos de inclusão no mercado. Nossa expectativa é chegarmos ao fim do meu mandato, em 2021, com um cenário bem mais expressivo em termos de representatividade. É bom lembrar que as mulheres já ocupam a maior parte dos postos de produção cinematográfica, mas precisamos trazer novos olhares e cores para direção, roteiro, especialmente de negros e, mais especialmente, de mulheres negras. Há muito a ser feito e estamos trabalhando para melhorar isso”, finaliza Christian.
A política de fomento e redução de desigualdades na produção audiovisual foi o motivo de um desentendimento, em dezembro do ano passado, entre o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, e a então presidente interina da Ancine, Débora Ivanov. O MinC comunicou a aprovação do pacote de verbas para a promoção da igualdade, ressaltando que o único voto contrário foi o de Débora. Já a agência declarou que ela era contra a postergação das medidas, proposta pelo ministro, que gostaria de submetê-las ao Conselho Superior do Cinema. Em janeiro, Débora deixou a presidência e voltou a exercer o cargo de diretora da Ancine, sendo substituída por Christian.
Em Hollywood, as polêmicas também permeiam a questão da inclusão e da diversidade no mundo do cinema. Para Viviane, a melhora nos indicadores no Oscar não pode ser desvinculada da urgência de mudança de paradigma nas relações entre as pessoas:
“A representatividade e participação ativa são elementos muito importantes para a vida de qualquer indivíduo. Hollywood se consolidou como a principal máquina de construção simbólica a serviço do capital, sendo exterminadora de representações e possibilidade de participação dos grupos ‘marginalizados’, não necessariamente das ‘minorias’. Os movimentos feministas e negros estão em um momento de experimentar a vitória de uma etapa da batalha pela disputa narrativa. Essa vitória parcial tem forçado os senhores, afinal são homens brancos, donos do capital, a reformularem suas práticas e discursos no intuito de seguirem lucrando. Nesse sentindo, haverá tantos “Moonlight” e “Pantera Negra” quanto a população negra mundial queira, desde que isso não altere a ordem de quem lucra com esses produtos”.