Cirurgiões plásticos brasileiros usam pobres como cobaias, acusa antropólogo do Equador

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Por Cynara Menezes em Socialista Morena – 

Livro publicado nos EUA denuncia uso de fraude para fazer cirurgias estéticas pelo SUS e os padrões racistas de beleza dos médicos

CENA DO FILME “BRAZIL”, DE TERRY GILLIAM, 1985

Quando se fala em cirurgia plástica pelo SUS (Serviço Único de Saúde), ou seja, paga por nós, cidadãos, sempre se pensa em cirurgia reparadora: para corrigir defeitos do corpo ou da face congênitos ou acidentais, deformidades resultantes de queimaduras e redução de seios para problemas de coluna, por exemplo. De fato, o ministério da Saúde só aprova cirurgia plástica na rede pública nestes e nos seguintes casos: reconstrução das mamas pós-câncer, lábio leporino, ginecomastia, cirurgia reparadora pós-cirurgia bariátrica e desvio de septo.

Mas Alvaro Jarrín, um antropólogo equatoriano, professor da Universidade Holy Cross, nos Estados Unidos, defende, em um livro publicado em agosto passado pela Universidade da Califórnia, que 95% das cirurgias plásticas na rede pública brasileira hoje são meramente estéticas. Segundo ele, estes números não aparecem porque as regras são burladas e as estatísticas são maquiadas pelos chefes dos setores de cirurgia plástica dos hospitais brasileiros. “Rinoplastia”, a plástica para afinar o nariz, vira “correção de desvio de septo” no formulário; “abdominoplastia” vira “correção de hérnia”; “lifting” se transforma em “correção de paralisia facial”.

Segundo Alvaro Jarrín, 95% das cirurgias plásticas na rede pública brasileira hoje são meramente estéticas. Estes números não aparecem porque as estatísticas são maquiadas pelos chefes dos setores de cirurgia plástica dos hospitais

Mais grave: em Biopolitics of Beauty: Cosmetic Citizenship and Affective Capital in Brazil (A Biopolítica da Beleza: Cidadania Cosmética e Capital Afetivo no Brasil, em tradução livre), Jarrín acusa os médicos residentes em cirurgia plástica de usarem pessoas pobres como cobaias dos novos procedimentos que irão aplicar com sucesso, depois de formados, em sua clientela rica. Quando um erro acontece, os pacientes, a maioria mulheres pobres, não têm recursos para entrar com um processo na Justiça contra o hospital.

O antropólogo encontrou casos como o de Celine, em Belo Horizonte, que foi orientada a relatar ter uma hérnia e sentir dores intestinais para conseguir uma abdominoplastia sem custo, paga pelo SUS, feita por um residente em cirurgia plástica.

“Isto permitiria que o cirurgião conduzisse uma cirurgia de maior envergadura que ele chamaria de correção de hérnia, enquanto estava, na verdade, fazendo uma mini-abdominoplastia, uma nova técnica que ele afirmava ser menos invasiva. Celine concordou, esperando se livrar do excesso de tecido na barriga que a chateava desde a segunda gravidez”, escreveu Jarrín. “Quando ela acordou da cirurgia, porém, viu que sua barriga estava deformada e desnivelada, com uma cicatriz muito pior do que a da cesariana.”

“O jovem cirurgião plástico ofereceu uma cirurgia corretiva, novamente de graça, mas ela recusou, com medo que ele simplesmente não tivesse experiência suficiente para fazer um bom trabalho. Não valeria a pena, ela me disse, denunciar o médico ou processá-lo na Justiça, porque ela não conseguiria nada e advogados custam muito caro.”

Outro caso relatado foi o de Renata, submetida a uma mamoplastia em um hospital universitário do Rio de Janeiro. “Ela esperava recuperar os seios firmes que tinha quando era mais jovem. No dia da cirurgia, porém, descobriu que seria operada por um jovem residente colombiano que nunca tinha encontrado antes, e que a cirurgia seria apenas supervisionada por um cirurgião experiente”, Jarrín conta. A cirurgia de Renata foi um fracasso: um dos seios ficou mais alto do que o outro e os mamilos ficaram fora de lugar. Além disso, o local das cicatrizes passou a infeccionar com frequência.

A cirurgia de Renata foi um fracasso: um dos seios ficou mais alto do que o outro e os mamilos ficaram fora de lugar. Além disso, o local das cicatrizes passou a infeccionar com frequência

“Renata pensou em acionar o médico judicialmente, mas descobriu que suas chances de ganhar eram mínimas, e que mesmo com um advogado trabalhando pro bono ela não teria dinheiro para processar: só a avaliação de especialistas para confirmar o erro médico lhe custaria no mínimo 3.500 reais”, diz o livro. Ela decidiu então processar o hospital para que custeasse a avaliação. Eles recusaram, oferecendo apenas refazer a cirurgia gratuitamente, desta vez com o próprio diretor do setor de cirurgia plástica no comando.

“Neste meio tempo, ela teria que se conformar em ter seios deformados que a faziam incrivelmente infeliz e que ela não poderia consertar se decidisse ir à Justiça, porque eles eram a única prova do erro médico do qual tinham sido vítimas.”

O antropólogo equatoriano também afirma que uma técnica questionável só passou a ser amplamente utilizada após ser experimentada na rede pública, com os pobres como cobaias: a bioplastia, aplicação de uma substância plástica, o PMMA, para “preenchimento” de partes do corpo e rosto. Jarrín diz que 60 litros de PMMA são utilizados por mês em procedimentos estéticos apenas no Rio de Janeiro. Como uma aplicação de poucos mililitros custa pelo menos 600 reais, é possível presumir que se trata de um mercado milionário, embora a substância esteja longe de ser segura. O CFM (Conselho Federal de Medicina) fez um alerta em 2006 pedindo cautela em seu uso porque não se sabe o efeito do PMMA no organismo a longo prazo.

Em sua maioria homens brancos e de elite, os cirurgiões plásticos projetam nas pacientes um padrão de beleza europeu que tem na modelo Gisele Bündchen seu ideal, incentivando, na classe trabalhadora, a aversão por suas características negras e mestiças

“Como outras técnicas experimentais, a bioplastia foi testada primeiro nos corpos de pacientes de baixa renda em hospitais públicos, mas se tornou disponível para uso do público em geral sem um histórico comprovado de segurança”, diz o livro. “Há controvérsia sobre quem inventou a bioplastia, porque um cirurgião do Rio de Janeiro diz que ele e seus estudantes de medicina primeiro testaram o uso estético do PMMA em um hospital público, percebendo seu potencial.”

O mais chocante do trabalho de Alvaro Jarrín são as conclusões a que ele chega a partir destas descobertas: que os cirurgiões plásticos brasileiros são influenciados até hoje pelo conceito de eugenia e pelas concepções ultrapassadas de Cesare Lombroso. Em sua maioria homens brancos e de elite, os cirurgiões plásticos projetam nas pacientes um padrão de beleza europeu que tem na modelo Gisele Bündchen seu ideal, incentivando, na classe trabalhadora, a aversão por suas características negras e mestiças, e perpetuando a baixa autoestima e uma visão racista da beleza.

NARIZ “NEGROIDE” NA ACTA CIRURGICA BRASILEIRA. FOTO: REPRODUÇÃO

Logo na introdução do livro, Jarrín conta como o impressionou a frase que lhe foi dita por uma amiga negra: “No Brasil não tem feio, só tem pobre”. A sentença deixou claro para o antropólogo que, para os brasileiros, ser feio ou bonito é uma questão de ter dinheiro. Também ficou evidente para ele que “boa aparência”, requisito exigido em todos os empregos por aqui, é sinônimo de ser branco, ter cabelo liso e “nariz fino”, daí a busca por “afinar o nariz” nas classes mais baixas, cirurgia estimulada por profissionais de saúde que até hoje chamam o nariz “achatado” de “negroide”, uma terminologia de dois séculos atrás.

“Os cirurgiões plásticos e outros médicos com certeza representam e reproduzem os ideais de beleza das elites brancas brasileiras, já que são membros dessas elites e têm interesse em manter as hierarquias estéticas de raça, classe e gênero que o país possui”, diz o antropólogo. “Os cirurgiões plásticos têm um discurso racializado da beleza no Brasil, e fazem o diagnóstico do ‘nariz negroide’ como um problema que precisa de correção cirúrgica, e falam de pessoas que se ‘misturaram demais’ e portanto precisam de cirurgia plástica. Os modelos de beleza nacionais, segundo os cirurgiões plásticos, são mulheres como a Gisele Bündchen, pessoas que são claramente de origem europeia, e simplesmente não representam a diversidade racial e a diversidade de corpos no Brasil.”

Os cirurgiões plásticos têm um discurso racializado da beleza no Brasil, e fazem o diagnóstico do 'nariz negroide' como um problema que precisa de correção cirúrgica, e falam de pessoas que se 'misturaram demais' e portanto precisam de cirurgia plástica

Por tudo isso, o equatoriano desafia o “direito à beleza” propagandeado por nosso mais festejado cirurgião plástico, Ivo Pitanguy, que angariou prestígio tal à profissão que ninguém questiona que o Estado brasileiro permita fazer cirurgias plásticas pelo SUS. “Os cirurgiões plásticos utilizam sua disciplina médica para reforçar as diferenças de raça, classe e gênero no país, e não democratizam a beleza”, afirma.

O antropólogo Alvaro Jarrín falou ao site com exclusividade, por e-mail.

O PROFESSOR ALVARO JARRÍN. FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Socialista Morena – Por que você se interessou pela questão das cirurgias plásticas no Brasil?
Alvaro Jarrín – Minha especialização dentro da antropologia é a antropologia médica ou antropologia da saúde, e portanto estava muito interessado no sistema de saúde brasileiro.  Eu sabia que o país tinha um número muito alto de cirurgias plásticas, mas inicialmente eu ia pesquisar o turismo médico que traz estrangeiros ao Brasil para fazer plástica.  Foi só depois de falar com cirurgiões plásticos brasileiros que fiquei sabendo que o sistema público de saúde dava acesso à cirurgias plásticas. Isso é bastante único no mundo, e tem muito a ver com a visão do Ivo Pitanguy e a influência que ele teve desde os anos 1960 com seu conceito do “direito à beleza,” que ganhou apoio do governo do Juscelino Kubitschek e continua até hoje em dia.

– É diferente no Equador? Te chocou a mudança cultural, a forma como nós, brasileiros, naturalizamos estas cirurgias?
– As cirurgias plásticas estão ficando mais comuns no Equador, mas ainda são um produto de consumo limitado às elites do país. O que mais me surpreendeu no Sudeste brasileiro é o quanto a cirurgia plástica tem se popularizado em todas as classes sociais, dos mais ricos aos mais pobres, e a ampla percepção de que a ‘boa aparência’ é crucial para ter qualquer tipo de oportunidades na vida.  Beleza, no Brasil, não é simplesmente um assunto de vaidade, mas é algo muito mais profundo, e tem a ver com acesso à cidadania e com as profundas desigualdades de raça, gênero e classe que o país vive.

– Você afirma em seu livro que as pessoas pobres, sobretudo mulheres pobres, estão sendo usadas por residentes em hospitais públicos como cobaias para se esmerarem nas técnicas que serão melhor utilizadas nas ricas. Muitos erros médicos surgem dessa prática? Não há fiscalização por parte do governo?
– Nos hospitais públicos, universitários e filantrópicos do Sudeste brasileiro –hospitais que dependem do SUS–, as cirurgias plásticas são utilizadas para os residentes em cirurgia plástica poderem pôr em prática as técnicas que eles só sabem em teoria, e desenvolver novas técnicas que ainda são experimentais. Os residentes são supervisionados por médicos formados em cirurgia plástica e ganham experiência aos poucos, mas acontecem erros sérios que deixam os pacientes das classes populares (a maioria mulheres) com problemas graves, sejam cicatrizes, infecções ou resultados estéticos que as tornam mais infelizes do que antes. Porém, à diferença dos pacientes com mais condições, os pacientes pobres não possuem recursos para processar por erro médico ou ganhar a atenção da mídia. A maioria dos pacientes nos hospitais públicos ficam felizes com as cirurgias que recebem, mas uma importante minoria está sendo injustiçado. Do ponto de vista ético, me preocupa que pessoas corram riscos sem necessidade.  O governo não fiscaliza estas cirurgias, em parte porque o governo não tem os recursos nem o capital humano para fiscalizar o que ocorre no dia a dia dentro dos hospitais financiados pelo SUS, e em parte porque os cirurgiões plásticos brasileiros têm um prestígio muito alto e não são questionados pelos seus colegas.

Nos hospitais públicos, universitários e filantrópicos do Sudeste –hospitais que dependem do SUS–, as cirurgias plásticas são utilizadas para os residentes poderem pôr em prática as técnicas que só sabem em teoria, e desenvolver novas técnicas que ainda são experimentais

– Acredito que a ideia geral (a minha, por exemplo) é que as cirurgiões plásticas no SUS seriam para problemas como seios grandes que causam dores na coluna, deformações faciais… Mas, pelo que você diz, hoje 95% das cirurgias plásticas no serviço público são estéticas. Como foi que isso mudou?
– A mudança ocorreu aos poucos, por pressão dos residentes que preferem aprender cirurgias estéticas que eles podem depois vender em clínicas particulares, e por ações do Conselho Federal de Medicina que relativizaram a definição de cirurgia reparadora. Inicialmente, quando Pitanguy inaugurou seu serviço na Santa Casa da Misericôrdia em 1960, a maior parte das cirurgias eram reparadoras e tratavam deformidades congênitas ou casos de queimaduras graves.  Porém, pouco a pouco esse tipo de cirurgia reparadora perdeu importância na Santa Casa e em outros serviços similares abertos em hospitais públicos, universitários e filantrópicos no país. As cirurgias reparadoras simplesmente não dão lucro e todos os residentes que eu entrevistei não têm nenhum interesse em aprender a fazê-las.  Não são simplesmente residentes brasileiros, mas residentes do mundo inteiro que vêm ao Brasil para aprender cirurgias estéticas, e as residencias médicas que ensinam uma maior porcentagem de cirurgias estéticas têm uma melhor reputação global e são mais atrativas. Ao mesmo tempo, a profissão médica como um todo começou a relativizar o que podia ser incluído como cirurgia reparadora, e com o passar de tempo um maior número de cirurgias foram consideradas não só estéticas mas cirurgias reparadoras pelo CFM, incluindo cirurgias de mama, cirurgias de pálpebra, cirurgias de face, abdominoplastias, etc. Isto facilitou a inclusão de mais e mais cirurgias no conceito de cirurgia reparadora, embora estas cirurgias seriam consideradas cirurgias estéticas em outros países.

– Em seu livro você diz que é frequente rinoplastias virarem “desvio de septo” e plásticas no rosto virarem “correção de paralisia facial”. Os cirurgiões recorrem à fraude para disfarçar essas cirurgias? Isso é recorrente?
– Durante os três anos da minha pesquisa em diferentes hospitais do Sudeste brasileiro, eu vi centenas de casos onde a cirurgia mudava de nome para conseguir que o SUS pagasse por ela. Os cirurgiões plásticos e os residentes são os únicos presentes durante o diagnóstico do problema que o paciente está sofrendo, e eles também são os que preenchem os documentos que justificam a cirurgia aos olhos do governo. De certa forma, os médicos têm a total autoridade do Estado dentro do espaço hospitalar, e eles utilizam essa autoridade para transformar o sistema público de saúde em algo que eles acham útil e importante. Acho que eles não chamariam isso de fraude, simplesmente diriam que dão um jeito para aprovar as cirurgias necessárias. Porém, do ponto de vista do governo, isto representa um gasto enorme num sistema de saúde que já tem recursos muito limitados, e as estatísticas que o governo possui certamente estão erradas e não representam a realidade.

– Esta prática ocorre também na famosa clínica do Pitanguy?
– A clínica do Pitanguy em Botafogo, Rio de Janeiro, só faz cirurgias particulares, mas a enfermaria dele, na Santa Casa da Misericórdia, faz agora quase só cirurgias estéticas, embora originalmente tenha sido criada para cirurgia reparadora. Diferentemente de outros serviços na rede pública, a enfermaria do Pitanguy é financiada pelos ex-alunos dele, e oferecem cirurgias a baixo custo, não de graça. A enfermaria não é financiada pelo SUS diretamente, mas a estrutura hospitalar geral da Santa Casa depende sim do SUS. Mas foi em outros hospitais da rede pública que eu vi a tendência de reclassificar cirurgias para que sejam cobertas pelo SUS.

Vi centenas de casos onde a cirurgia mudava de nome para conseguir que o SUS pagasse por ela. Os cirurgiões plásticos e os residentes são os únicos presentes durante o diagnóstico, e também são os que preenchem os documentos que justificam a cirurgia aos olhos do governo

– Como eles conseguiram colocar um produto exclusivo para uso estético, como é o PMMA, na rede pública?
– O PMMA tem usos na cirurgia reparadora, por exemplo em pacientes que são soropositivos e que sofrem má distribuição de gordura devido aos medicamentos que precisam tomar. Porém, o PMMA é muito mais lucrativo como preenchimento estético, embora seja uma técnica de alto risco. Residentes de medicina que desejam aprender a fazer aplicações de PMMA acham formas de oferecer esses serviços aos pacientes da classe trabalhadora, não só em hospitais da rede pública mas em centros de medicina estética que oferecem preenchimentos a baixo custo. Eu entrevistei uma mulher que até servia de cobaia para um médico em congressos de medicina estética, e ele fazia preenchimentos no rosto dela de graça, em troca de vender o produto que ele oferecia a outros médicos. Devido ao lucro que representam, há várias outras especialidades médicas além da cirurgia plástica que oferecem procedimentos estéticos a pacientes de baixos recursos.

– Dilma errou em aprovar a cirurgia plástica gratuita para mulheres vítimas de violência doméstica?
– Infelizmente a aprovação de cirurgias plásticas para vítimas de violência doméstica simplesmente abriu todo um novo caminho para justificar cirurgias estéticas, e com certeza vai beneficiar muitos pacientes que nunca sofreram violência. Acho também que garantir este tipo de cirurgia só trata um dos sintomas da desigualdade de gênero no país, e não faz nada para evitar novos tipos de violência.

– Você também aborda a questão racial por trás das cirurgias plásticas na classe trabalhadora. “Afinar” o nariz é quase uma exigência do mercado de trabalho e da sociedade. Ser “preto, pobre e feio” é considerado uma maldição em nosso país?
– Os cirurgiões plásticos têm um discurso racializado da beleza no Brasil, e fazem o diagnóstico do “nariz negroide” como um problema que precisa de correção cirúrgica, e falam de pessoas que se “misturaram demais” e portanto precisam de cirurgia plástica. Os modelos de beleza nacionais, segundo os cirurgiões plásticos, são mulheres como a Gisele Bündchen, pessoas que são claramente de origem europeia, e simplesmente não representam a diversidade racial e a diversidade de corpos no Brasil. Porém, as mulheres de classe trabalhadora que eu entrevistei nem sempre concordam com esses discursos médicos. Embora procurem afinar o nariz, falam disso como uma consequência direta da discriminação racial e da discriminação de classe. Muitas descreveram a procura pela cirurgia plástica como a “ditadura da beleza”. A estética corporal, em minha análise, é a arena de conflito onde diferenças de raça, classe e gênero estão sendo discutidas no Brasil.

– No aspecto social, você afirma que a primeira coisa que uma pessoa faz quando se torna bem-sucedida é alisar o cabelo e afinar o nariz. Como você vê a influência de ícones pop como Anitta nisso? Quando ela ficou famosa a primeira coisa que fez foi uma rinoplastia.
– A mobilidade social está muito ligada à aparência no Brasil. Muitos dos pacientes da classe trabalhadora que eu entrevistei enxergavam a cirurgia plástica como algo que ia possibilitar sua mobilidade social no futuro, ou que ia garantir qualquer mobilidade social que já haviam conquistado. Isso explica por que a cirurgia plástica continua crescendo no país, inclusive em épocas de crise econômica, quando outras formas de consumo diminuem. O fato de celebridades falarem das cirurgias plásticas que fizeram com certeza alimenta esse imaginário popular de que beleza, fama e sucesso estão interligados.

O Brasil precisa se questionar se oferecer cirurgia plástica na rede pública é ético e necessário. Num contexto em que o governo está fazendo cortes muito grandes no SUS, é preciso repensar se o "direito à beleza" é sustentável e se realmente beneficia a população

– O fato de os cirurgiões plásticos serem, em sua maioria, homens brancos, influencia nesta concepção de que ter boa aparência é sinônimo de ter a pele branca? Se fosse possível também branquear a pele além de afinar o nariz as pessoas fariam isso?
– O Brasil afortunadamente não tem a epidemia de tratamentos de “clareamento de pele” que outros países têm, como a Índia. Embora os afrobrasileiros claramente sofram preconceito no Brasil, o ideal em termos de cor é o moreno de sol, que representa a habilidade de poder frequentar a praia e consumir essas formas de lazer negadas aos mais pobres. Afinar o nariz e fazer escova no cabelo são mais importantes como marcadores raciais do que clarear a pele no Brasil, embora haja dermatologistas brasileiros que oferecem tratamentos para clarear a pele. Os cirurgiões plásticos e outros médicos com certeza representam e reproduzem os ideais de beleza das elites brancas brasileiras, já que são membros dessas elites e têm interesse em manter as hierarquias estéticas de raça, classe e gênero que o país possui. Por exemplo, a grande maioria de serviços de cirurgia plástica no país simplesmente reforçam a ideia de que as mulheres devem ser mais femininas e os homens mais masculinos, e fazem quase impossível que travestis e transexuais tenham acesso a qualquer tipo de cirurgia plástica.

– Você cita médicos brasileiros explicando que são bons porque no Brasil podem fazer tudo, não há um órgão como o DEA, nos EUA, para impedir. Falta regulação?
– Em outros países, a cirurgia plástica é uma das disciplinas médicas com a regulação mais estrita, precisamente porque é uma especialidade que facilmente cai em exageros, e que pode ter sérias consequências em termos de erro médico se não for regulada adequadamente. No Brasil, o prestígio que a cirurgia plástica tem faz dela uma das disciplinas médicas com menor regulação no mercado, e os cirurgiões plásticos brasileiros têm muitas mais liberdades para experimentar com novas técnicas do que em outros países. Muitos dos cirurgiões plásticos mais sérios que eu entrevistei estavam preocupados com o estado desta especialidade médica no Brasil, e criticam o fato de que o lucro tem se convertido no principal objetivo e não necessariamente o bem-estar do paciente. Porém, acho que a regulação tem que vir do governo para criar mudanças duradouras no sistema, porque a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica não está fazendo o suficiente para combater estes problemas.

– Você considera um erro que a cirurgia plástica no Brasil possa ser feita gratuitamente no serviço público?
– Eu considero que o Brasil precisa pelo menos se questionar se oferecer cirurgia plástica na rede pública é ético e necessário. O sistema público de saúde brasileiro é muito importante porque oferece saúde aos mais pobres e, em certas áreas, como o tratamento do câncer, o Brasil está bem à frente de muitos outros países onde só os ricos têm acesso ao melhor tratamento. Porém, num contexto de austeridade, em que o governo brasileiro está fazendo cortes muito grandes no SUS, é preciso repensar se o “direito à beleza” é sustentável e se realmente beneficia a população. Meu trabalho questiona o conceito de que os cirurgiões plásticos simplesmente estão fazendo um trabalho humanitário nos hospitais da rede pública, porque eles claramente se beneficiam e os pacientes as vezes pagam as consequências. Além disso, os cirurgiões plásticos utilizam sua disciplina médica para reforçar as diferenças de raça, classe e gênero no país, e não democratizam a beleza.

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