Pesquisadora e ex-militante, primeira mulher a presidir o país pode e precisará responder a emergência climática
Por Lucas Berti, Maurício Brum, compartilhado de A Pública
Entre os vários simbolismos da vitória histórica de Claudia Sheinbaum – a primeira mulher presidenta na história do México, eleita no domingo, 2 de junho –, um deles se destaca: sua longa carreira científica e suas promessas de guinada em prol de uma agenda climática sustentável. Para pesquisadores da área, o perfil de Sheinbaum pode ser um ponto de virada para os rumos da governança ambiental no segundo maior país da América Latina.
Além de manter o Executivo por mais seis anos nas mãos do partido governista de esquerda Movimento Regeneração Nacional (Morena), Sheinbaum contará com um Legislativo bastante favorável para promover uma eventual “agenda verde” – eleitores também escolheram representantes para renovar cadeiras na Câmara e no Senado. Considerando alianças internas, o Morena deve contar com maioria nas duas casas legislativas, podendo até alcançar maioria qualificada (dois terços dos votos) em ambas.
Caso a futura presidenta mantenha as promessas de colocar a transição energética no centro de sua política ambiental, é possível que o clima ganhe uma atenção inédita sob a nova administração que se inicia no próximo mês de dezembro. Em campanha, Sheinbaum prometeu investir mais de US$ 13 bilhões em energias renováveis.
A política eleita foi integrante por oito anos, a partir de 2007, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), criado pela ONU em 1988 e hoje uma entidade com importante papel no monitoramento da crise global do clima. Além disso, Sheinbaum concluiu seu doutorado em engenharia energética, aliando um papel de liderança em movimentos estudantis na década de 1960 a seus estudos pessoais em temas como termodinâmica e uso eficiente de energia e conservação, iniciados e desenvolvidos na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam).
POR QUE ISSO IMPORTA?
- Claudia Sheinbaum, primeira presidenta do México, é uma pesquisadora da área de energia – conhecimento central para realizar a transição energética no contexto de emergência climática.
- O México é, depois do Brasil, a maior potência econômica e população da América Latina, o que significa que sua polícia ambiental e climática está entre as com maior impacto dos países da região.
Ela se aproximou do atual presidente, Andrés Manuel López Obrador, no início dos anos 2000, quando o próprio mandatário ainda dava seus primeiros passos no alto escalão da política mexicana. Foi com Obrador no governo da Cidade do México, entre 2000 e 2005, que Sheinbaum atuou como secretária de Meio Ambiente da capital, forjando uma aliança que seria crucial para sua vitória neste mês de junho.
Em 2013, lançou duras críticas contra planos de privatização da petrolífera estatal Petróleos Mexicanos (Pemex), combinando um discurso em defesa da indústria nacional aliado às “necessidades de diminuir a exploração do petróleo pelos efeitos das mudanças climáticas”, nas suas palavras.
Uma década mais tarde, já durante sua campanha eleitoral em 2023, a então presidenciável compartilhou suas falas antigas pelas redes sociais, mostrando que teria a intenção de evitar que antigos erros de gestão ambiental se repetissem: “O governo mente quando diz que é necessário produzir mais petróleo […] Enquanto o mundo discute como diminuir a exploração petroleira por conta das mudanças climáticas, o governo do México não entende o assunto”, disse há mais de uma década.
“Claudia Sheinbaum tem uma expertise nesse tema que não se vê em outros líderes mundiais. Se ela souber aproveitar essa imagem enquanto cientista que pesquisa questões de sustentabilidade, isso vai ser um ganho gigantesco para a política externa mexicana”, avalia Flavia Loss, professora de Relações Internacionais do Instituto Mauá de Tecnologia (IMT), em São Paulo, em entrevista à Agência Pública.
Para avançar agenda verde, presidenta terá que corrigir rota de plano energético
Um dos principais fatores por trás da vitória acachapante de Sheinbaum – que obteve quase 60% dos votos – foi o alto índice de aprovação não apenas de seu partido, mas do presidente López Obrador.
A ex-mandatária da capital busca absorver a boa aceitação entre os mexicanos, sobretudo no campo social, que se tornou um dos principais impulsionadores do Morena como maior força política nacional. Ao mesmo tempo, pode ter problemas caso repita os resultados do mentor político em temas como segurança pública (só neste último ciclo eleitoral, 22 candidatos foram assassinados e centenas desistiram de concorrer temendo a violência) e meio ambiente.
A despeito de sua popularidade e de defender a soberania energética com unhas e dentes, AMLO – como o atual presidente também é conhecido, por suas iniciais – enfrentou críticas de ambientalistas e setores progressistas por apostar na manutenção de uma estrutura energética ainda bastante dependente dos combustíveis fósseis.
Em discursos recentes, Obrador exaltou a necessidade de ir por um caminho menos poluente, mas somente quando a infraestrutura geradora de energia limpa estiver devidamente consolidada para suprir a demanda interna. Analistas descrevem como importante a decisão do governo de apresentar metas “mais ambiciosas” de redução de emissões em cúpulas mundiais do clima recentes – mas ressaltam que, para que isso seja alcançado, mudanças em políticas públicas precisam começar sem demora.
Ainda em maio de 2019, pouco meses após o início da gestão AMLO, o plano de governo projetava aumentar a fatia da produção de energia via fontes renováveis de 25,6% para 35,8% até 2024. No entanto, estudos apontam que a produção energética não progrediu nesse sentido, ao mesmo tempo que índices pioraram durante os anos de pandemia.
“O que se discute hoje na União Europeia e nos Estados Unidos é a pauta ambiental. Isso pode dar uma proximidade do México com esses países que têm recursos para financiar a transição energética”, comenta Loss. “Não existe transição energética sem dinheiro, e esse é um investimento gigantesco que um país em desenvolvimento como o México não consegue fazer sozinho”, acrescenta. O projeto consiste em substituir matrizes de fontes como petróleo, carvão e gás natural, grandes emissores de gases de efeito estufa, por fontes que geram energia a partir de água, sol, vento e biomassa.
A necessidade de apoio externo, por sinal, foi citada por AMLO como justificativa para atrasar as mudanças no setor – um discurso recorrente entre países em desenvolvimento. “Devemos calcular bem o momento desta transição para que o México não volte a cair na dependência de estrangeiros”, disse o mandatário durante um evento que celebrou o aniversário de 86 anos da nacionalização da exploração do petróleo mexicano, em março.
Presidenta terá nas mãos um país dependente de energia não renovável
Atualmente, cerca de 80% da geração de energia do país ainda vem de fontes não renováveis. Documentos da Internacional Trade Administration (ITA) descrevem o ramo petrolífero como um “componente crucial” para a economia mexicana, com 20% das receitas totais do governo vindo dessa indústria em 2022.
Já Sheinbaum, cuja gestão se cerca ainda mais de expectativa por sua raiz acadêmica nesse mesmo ramo, promete fazer diferente. Ao menos é o que diz seu leque de propostas, cujo texto oficial menciona o termo “transição energética” mais de 300 vezes. A Associação Mexicana de Energia (AME), que celebrou o resultado das eleições, se disse “pronta” para promover essa mudança.
Para João Alfredo Lopes Nyegray, especialista em negócios internacionais e coordenador do curso de Comércio Exterior da Universidade Positivo (UP), em Curitiba, é possível que o novo governo não mude tanto a direção quanto às regulamentações já existentes no país. “O México possui e já tem implementado várias políticas ambientais e participa de diversos acordos internacionais para proteção do meio ambiente”, avalia. “A questão é que, como acontece tradicionalmente, não basta que um ou dois países participem desses compromissos ambientais. É necessário um comprometimento da sociedade internacional, e que seu vizinho ao norte [os Estados Unidos] faça o mesmo”, aponta.
Nesse sentido, mais do que mudar leis, Sheinbaum poderia promover a guinada através de subsídios a indústrias mais “limpas”, que hoje ainda são negligenciadas. Entre outras possíveis mudanças, como maiores estímulos à produção de biocombustíveis, um caminho possível é apostar em uma frota nacional cada vez maior de carros elétricos. De acordo com dados de 2023 da Associação Mexicana da Indústria Automotiva (Amia), uma política nacional que estimule esse setor poderia fazer com que quase 40% dos veículos vendidos no país não dependam de derivados do petróleo em 2030 – o número cairia pela metade caso nada seja feito.
Em seu estudo, a Amia projeta que esse tipo de transição reduziria as emissões em cerca de 26,2 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) até o final da década. O dado é relevante quando considerado que as emissões mexicanas voltaram a crescer de 2020 em diante, superando o patamar visto em 2018, o primeiro ano do Morena. Relatórios de 2023 mostram que o México é o nono país do mundo em índices de emissão de gases de efeito estufa.
Trem Maia – a herança controversa de Obrador
No âmbito da infraestrutura, Sheinbaum também herdará de Obrador uma situação cercada de controvérsias ao redor do chamado “Trem Maia”, linha férrea que se estende por mais de 1.500 quilômetros na península de Yucatán, zona apinhada de conhecidos destinos turísticos paradisíacos no Caribe mexicano – como Cancún.
Inaugurada parcialmente em 2023, a obra bilionária virou a menina dos olhos do presidente, que relatou a geração de 100 mil empregos e prometeu alavancar a prosperidade econômica em regiões historicamente empobrecidas do país, em especial nas províncias de Campeche e Chiapas.
No entanto, a exaltação da obra pelo governo conviveu com inúmeras denúncias de grupos indígenas e ambientalistas. De acordo com análises de satélite feitas por organizações não governamentais, pelo menos 6.700 hectares de floresta foram desmatados para a construção das linhas do trem. Além dos riscos que o empreendimento representa para a fauna e flora locais, entidades e especialistas alertam que comunidades originárias e até mesmo sítios arqueológicos protegidos enfrentam perigos.
Em 2022, quando confrontado sobre os possíveis danos ambientais vindos a bordo do Trem Maia, Obrador foi criticado ao acusar alguns ambientalistas de serem “financiados pelos Estados Unidos”.
Crise hídrica pode ser um dos principais desafios para futura presidenta
Há um calcanhar de Aquiles na pauta ambiental que pode assombrar a futura presidenta muito antes do que se imagina: a prolongada crise hídrica vivida pela Cidade do México, que nem sua gestão nem o governo seguinte, também do Morena, foram capazes de resolver. Desde 2022, as precipitações estão abaixo das médias históricas. Ela tomará posse meses após uma grave onda de calor causar a morte de pelo menos 60 pessoas e dezenas de animais silvestres (alguns, ameaçados de extinção) em território nacional. Especialistas apontam relação entre essas crises, altos índices de desmatamento e incêndios florestais.
“[O México] não é um país que vem desrespeitando os acordos ambientais como à primeira vista se poderia acreditar em virtude de um desenvolvimento industrial. No entanto, é um país que vem passando por problemas ambientais graves em virtude de mudanças climáticas”, comenta Nyegray.
Projeções mais pessimistas falam até da iminência de um “Dia Zero” no horizonte da capital mexicana, como é definida a data em que uma cidade fica desabastecida de água. No limite, se o cenário atual se mantiver, toda a mancha urbana onde vivem 22 milhões de pessoas poderia ficar sem água potável a partir do próximo dia 26 de junho.
Embora a estiagem explique parte do problema, há também uma responsabilidade do governo no agravamento da crise: a Secretaria do Meio Ambiente da cidade estima que até 40% do fornecimento de água seja desperdiçado por vazamentos na rede de distribuição, atribuídos a conexões ilegais e tubulações degradadas pelos anos, que o poder público não tem sido capaz de consertar a tempo.
Por enquanto, a ameaça de torneiras secas não teve custos políticos significativos: Sheinbaum não só venceu com folga como o Morena manteve o poder na Cidade do México com uma votação confortável. Mas tudo pode mudar rapidamente se o cenário mais ameaçador acabar confirmado.
“É uma pauta ainda subestimada, mas não é tão distante da realidade das pessoas, e é um tema de sobrevivência básica. [Sheinbaum e o Morena devem] estar correndo contra o tempo para que não ocorra e para diminuir o impacto de uma massiva falta de água, porque, se isso acontecer, é algo que vai assombrar o governo dela, e essa cobrança virá”, entende Loss.
Agenda climática pode aproximar México e Brasil
A vitória de Sheinbaum foi celebrada pelo governo Lula, que sempre manteve boa relação com AMLO. Pelas redes sociais, o líder brasileiro e a presidenta eleita trocaram elogios, projetando um horizonte de proximidade política e diplomática. Segundo a mexicana, seu país e o Brasil “são grandes nações unidas por uma visão e valores comuns”.
Historicamente, porém, esse contato não tem sido tão próximo. “São países geograficamente distantes e que têm naturalmente uma dificuldade de se integrar por ter uma pauta econômica semelhante”, explica Nyegray.
Mas, no papel de potências latino-americanas, os dois maiores países da região têm muito a ganhar com o desfecho eleitoral, seja pela afinidade entre os dois governos ou por agendas afins, espera Loss.
Pelo menos até o final de 2025, quando o Chile realizará novas eleições, quatro dos cinco maiores PIBs da região – Brasil, Chile, México e Colômbia – estarão, com exceção da Argentina de Javier Milei, sob o comando de lideranças à esquerda, o que pode facilitar a integração regional de olho em um horizonte mais comprometido com o meio ambiente.
“Com dois governos de centro-esquerda, temos mais chance de conversar e sentar na mesma ponta da mesa para pensar em projetos conjuntos. Seria fundamental para todo o continente, já que são as duas maiores economias da América Latina”, relata Loss à Pública. “Brasil e México são muito distantes, mas isso por barreiras que nós mesmos colocamos, pois somos mais parecidos do que imaginamos”, conclui.
Edição: Giovana Girardi, Bruno Fonseca