Por Heloisa Aun, compartilhado de Projeto Colabora –
O projeto Mulheres da Luz atua desde 2013 na região central de São Paulo para promover cidadania e garantia de direitos às prostitutas
Mulheres negras, periféricas, com baixa escolaridade e idades acima de 40 anos representam grande parte das atendidas pelo coletivo Mulheres da Luz, criado em 2013 com o objetivo de promover a cidadania e a garantia de direitos para prostitutas na região central de São Paulo. Desde o início da pandemia do novo coronavírus, a dificuldade vivida por esse grupo no acesso a políticas públicas tornou-se um agravante ainda maior, pois elas já não tinham como se sustentar.
A articulação das responsáveis pelo projeto foi a mais rápida possível: em apenas três dias formou-se uma rede de solidariedade para ajudar as mulheres em situação de prostituição e o resultado foi bastante positivo, mesmo com as atuais circunstâncias. Durante os últimos meses, o número de beneficiadas pelo coletivo subiu de 200 para 500 e não faltaram doações de alimentos para nenhuma delas.
Segundo Cleone Santos, uma das fundadoras da iniciativa, sua primeira reação diante do cenário foi de total espanto. “Quando vimos o Parque da Luz fechado, percebemos que teríamos de dar um jeito para que as mais de 200 mulheres em extrema vulnerabilidade fossem para casa e não ficassem na rua”, afirma em entrevista ao Projeto #Colabora. Foi então que surgiu uma campanha emergencial para arrecadar cestas básicas e doações em dinheiro, além da criação e distribuição de um material informativo sobre cuidados com a covid-19. “Tivemos uma vantagem porque fomos uma das primeiras a lançar uma ação”, lembra.
Todos os alimentos e o dinheiro arrecadado foram revertidos para as mulheres em vulnerabilidade, de acordo com a necessidade de cada uma. Para organizar as entregas, um grupo de jovens se voluntariou, levando as cestas e outros itens até a casa das famílias, o que se mantém até hoje.
O coletivo também encontrou outra forma de geração de renda. As mulheres passaram a produzir sabonetes e máscaras a partir de materiais doados, e os produtos estão sendo vendidos por meio das próprias redes sociais do Mulheres da Luz. Apesar de muitas já não estarem mais em isolamento, há cerca de 10 que permanecem dentro de casa com essa nova função. “Nós tivemos uma mulher contaminada pelo coronavírus, que infelizmente faleceu. Ela era de risco, mais de 60 anos. Mas, de forma geral, conseguimos auxiliar todas para não passarem necessidades”, explica.
Para ela, o isolamento trouxe à tona a solidariedade entre as próprias mulheres em situação de prostituição. “Antes, era cada uma por si”, reflete. Ademais, houve um avanço dessas pessoas na questão política. “Hoje, elas discutem e sabem diferenciar direita e esquerda, por exemplo. Antes não tinham essa noção. Isso é uma grande modificação porque é uma população vulnerável, que não tem como pensar em outras coisas, a não ser ganhar um pouco de dinheiro para comer e pagar contas”, diz.
O começo de tudo
A história do coletivo teve início anos antes de sua criação. Em 2005, Cleone era trabalhadora sexual e, como mulher em situação de prostituição, participou do encontro da Pastoral da Mulher Marginalizada. Nele, o grupo propôs que as próprias prostitutas liderassem a luta por direitos, e não as freiras, como ocorria até o momento. Alguns anos depois, em 2009, ela saiu da condição de mulher em situação de prostituição com a convicção de que deveria fazer algo por outras colegas que precisavam de apoio.
Ao conversar com a freira Regina Célia Coradin, do Espírito Santo, ambas tiveram a ideia de lançar o coletivo com o intuito de acabar com o tempo ocioso daquelas mulheres na região da Luz. “Primeiramente, pensamos em levar livros a elas, mas descobrimos que a maioria não sabia ler. Mudamos os planos e passamos a ensinar os primeiros passos da alfabetização”, recorda. A partir daí o grupo só cresceu. “Nós alfabetizávamos as integrantes nos bancos do Parque da Luz. Depois, o administrador do local nos cedeu um espaço para fazermos uma reunião por mês, mas as demandas eram tantas que isso logo se tornou pouco.”
Em seguida, Cleone e Regina conseguiram apoio do Museu da Língua Portuguesa para utilizar um espaço do prédio e realizar rodas de conversa sobre temas diversos. Surgiu, então, uma rede para promover a discussão da prostituição no centro de São Paulo, mesma época em que o coletivo foi inaugurado. “No porão do Parque da Luz, passamos a fazer encontros duas ou três vezes por semana e o trabalho foi avançando. Até antes da pandemia, atendíamos 200 mulheres por mês, as quais recebiam cestas básicas quando necessário.”
Um trabalho pela autoconfiança
Até março, o Mulheres da Luz mantinha poucas ações, tais como o lanche da tarde oferecido diariamente às participantes e cestas básicas para quem mais necessitava. “Agora descobrimos quais as aptidões de cada uma, como ocorreu no caso da produção de sabão”, acrescenta Cleone. “E uma boa notícia: elas estão com um pedido de 10.500 pedras de sabão para entregar”, enfatiza.
As rodas de conversa semanais se baseavam em temas diversos, como saúde, educação, métodos contraceptivos, entre os demais assuntos discutidos por movimentos feministas. Outro debate se estabelecia no caso da regulamentação da prostituição, mas grande parte não queria falar a respeito. “A única roda de conversa esvaziada era essa, pois elas não se veem como profissionais do sexo, como eu me coloco, mas sim como mulheres em situação de prostituição”, destaca a idealizadora do projeto.
Todo esse trabalho se dá com um intuito potente: impactar a autoconfiança das mulheres através de novas possibilidades para suas vidas. “Nós atuamos com elas, e não para elas. Falo isso com muita certeza porque já estive nesse lugar e sei que só consegui sair daquela situação com a força de pessoas que ajudaram a descobrir minhas qualidades”, reitera. “Antes de ser trabalhadora sexual, tinha passado um tempo como militante de movimentos sociais, mas a prostituição tem o poder de desconstruir os valores que estabelecemos. Eu achava que não era capaz de mais nada.”
A recepção das mulheres atendidas pelo coletivo é exatamente como as fundadoras gostariam. E, o melhor, a base de todo esse processo é a confiança. No começo, muitas que chegavam no espaço do grupo não falavam o nome, só o que dizem na rua. “Nós sempre respeitamos. Até hoje, quando alguém chega lá e não fala nada, oferecemos um café, um suco e uma água, sem perguntar informações pessoais”, relata. “Muitas falam que depois que a gente iniciou a atuação elas se sentem mais seguras e têm para onde ir.”
Atualmente, as responsáveis pela iniciativa sabem quando cada uma das mulheres em situação de prostituição tem um companheiro ou se sofrem violência em casa, por exemplo. No segundo caso, há apoio na hora da denúncia. “Este é outro problema. Em grande parte das vezes a violência acontece na rua, quando o parceiro descobre que ela se prostitui. Ao chegar à delegacia, sempre tem a pergunta que as fazem desistir: ‘o que você estava fazendo lá?’”, completa.
Mais mulheres atendidas
Se antes da quarentena eram 200 mulheres acolhidas no espaço, as expectativas para o retorno do trabalho presencial são altas. O atendimento funcionava de terça a sábado, das 13h às 17h, porém, a ideia é alugar um imóvel maior e estender o período para dar conta das 500 atuais participantes.
Embora seja pouco, o apoio das pessoas ao coletivo tem surgido cada vez mais. Um grupo irá financiar o aluguel de uma casa a elas pelo menos por dois anos. O problema é justamente o preconceito na hora de procurar o local, uma vez que muitos proprietários desistem do contrato ao saberem que servirá para mulheres em situação de prostituição. “É uma sociedade cruel. Ninguém faz nada porque é um público invisível e que mexe com a moral”, finaliza Cleone.
É possível ajudar o Mulheres da Luz com doações em dinheiro ou alimentos. Saiba como neste link: [https://www.mulheresdaluz.com.br/apoie]
Site do coletivo: https://www.mulheresdaluz.com.br/
Instagram: https://www.instagram.com/ongmulheresdaluz/?hl=pt-br
Facebook: https://www.facebook.com/mulheresdaluz