Saúde, Trabalho, Previdência, Terra. Reformas antineoliberais avançam, mas oligarquia age para bloqueá-las. Presidente tenta virar o jogo: recompõe seus ministérios e busca novas alianças. Seu maior trunfo é o amplo apoio popular
Por Edgar Fernandez, compártilhado de Outras Palavras
Por Edgar Fernandez, no Rebelión | Tradução: Rôney Rodrigues
O surpreende anúncio do presidente Gustavo Petro sobre o fim da coalizão governista é um movimento brusco que perturba o quadro das forças políticas institucionais na Colômbia. Tanto que levanta questões sobre como o governo poderá recompor sua capacidade de avançar em reformas sociais e, mais ainda, se isso geraria uma crise de governamentalidade. Neste momento, o país encontra-se num quadro de indecisão que se resolverá à medida que as forças partidárias se reorganizem – e justamente isso nos leva a pensar numa possível transição para uma forma de governo mediada pela gestão de crises permanentes.
O governo disse que a ruptura da coligação – com os partidos Liberal, da U e Conservador – foi provocada pelos presidentes desses grupos que não apoiam as reformas propostas. Além disso, ele destacou que recorrem a ameaças para impor suas ordens, referindo-se expressamente ao ex-presidente César Gaviria, que ordenou de forma autoritária que sua bancada votasse contra a reforma da Saúde. Esse autoritarismo é constatado pelo deputado Juan Carlos Lozada, ao citar que 16 deputados liberais se opõem a essas diretrizes, e que não houve votação democrática dentro do Partido, como exige suas normas internas.
A proposta de reforma da Saúde é a iniciativa social mais progressista que o atual governo articula, pois pretende limitar o papel central que o capital tem na prestação desse serviço. Com ela, o governo enfrenta o poder econômico de 12 das 60 maiores empresas do país – 20% do total –, somadas às grandes clínicas e outras IPS (Instituições Prestadoras de Serviços de Saúde). Essas empresas financiaram a campanha de pânico socialatravés da qual os colombianos são informados de que a Saúde está acabando, um discurso tétrico que é replicado pelos sindicatos de saúde e pelos porta-vozes políticos do grande capital, especialmente Gaviria, Santos e Vargas Lleras, bufões pagos que chegam ao absurdo de sustentar a grande mentira de que o país tem um dos melhores sistemas de saúde do mundo [i].
Embora as reformas sociais apresentadas pelo governo estejam longe de responder às mudanças estruturais que os protestos de 2019 e 2021 exigiram, são muito mais do que do que Iván Duque fez, ao bater a porta na cara dos porta-vozes do Comité Nacional de Greve. Petro tem consciência disso, entende que o atual momento é apenas um parêntese nos protestos para que ocorram as mudanças que o país precisa e exige. Embora ache que no Congresso os chefes dos partidos políticos – do capital – fecham as portas para uma mudança institucional e ampliam os caminhos para o choque direito entre as classes sociais.
Toda essa situação revela mais uma vez a dificuldade com que surgiu e se move o governo progressista, ao tentar regular e conciliar, a partir das instituições, os conflitos criados pelo capital nas últimas décadas. A este respeito, o governo não conta com uma base social firme, porque a burguesia e a grande burocracia não se sentem representadas nas reformas – e tampouco o proletariado e as demais classes populares.
Os partidos de direita acompanharam o governo, até agora, com o objetivo de domesticá-lo e controlá-lo, mas Petro reage fortemente a estas pretensões. Este limite foi demarcado na afirmação do recente comunicado de que a “aposta pelo diálogo e pelo pacto, foi rejeitada por algumas lideranças políticas tradicionais e do establishment”. Consequentemente, entre os novos representantes dos Ministérios, há pessoas de sua confiança e muitas próximas da sua trajetória política, com quais espera fazer avançar o programa de mudança [ii].
Isso, por sua vez, implica um distanciamento das cúpulas partidárias que representa mais diretamente o grande capital. Assim, ele apresenta uma relação mais fraca com o Partido de la U, ao apoiar apenas um de seus quadros no Ministério das TICs, enquanto parece querer aprofundar rachaduras no Partido Liberal ao fortalecer o vínculo com os liberais contrários a Gaviria e que o acompanham desde o início de sua campanha. É claro que essas decisões abrem grandes oportunidades para a ala oposicionista se ampliar e se fortalecer, por isso é preciso esperar as reações de cada uma das agremiações envolvidas.
Por outro lado, e apesar dos esforços vindos das instâncias oficiais, os setores populares ainda não se conectaram de forma mais incisiva com o presidente e sua formação ministerial. Isso fica evidente na multiplicidade de confrontos e protestos locais ocorridos desde o final do ano passado, mas sobretudo nas três convocações do governo para pressionar o Congresso a aprovar as iniciativas de reformas por meio de mobilizações. A desconexão relativa ficou evidente durante as lânguidas mobilizações de março, o que pode transformar as convocadas para esta semana em um verdadeiro “plebiscito” – e até em uma virada na política institucional do país.
Dada a ruptura da coligação com os demais partidos, o exercício do governo se torna dificílimo, pois tem apenas – diretamente – 17% da bancada no Senado. A seu favor, podemos acrescentar a legitimidade de ter vencido as eleições, aspecto destacado pelo próprio Roy Barreras – principal aliado de Petro – que recordou o presidente colombiano que ele contou com os votos dos liberais e que são as reformas que geram mudanças, não os protestos e tampouco confrontamentos [iii]. Assim, aqueles enfados de Petro acertaram em cheio, aprofundaram a crise e, com as atuais mudanças ministeriais, ele responde a Roy e aos liberais “dissidentes”.
Esses movimentos não resolvem totalmente as dúvidas sobre como será o realinhamento, o que implica, no mínimo, certa ruptura da Direção Liberal.
A formulação de resposta exige analisar o campo da especulação, por assim dizer, e as leituras vão até a convocação de uma Assembleia Constituinte ou a eclosão de uma crise de governabilidade. Algo mais evidente agora é que nestas semanas que faltam para o dia 20 de junho – quando encerra o período legislativo – serão um período muito curto para a aprovação das várias reformas sociais em curso. Portanto, o governo e os partidos enfrentam a difícil tarefa de ter que refazer os acordos para produzir algum resultado que ao menos tranquilizem as massas populares, perspectiva menos factível caso a ala opositora se fortaleça.
Em cenários mais extremos, como a convocação de uma Constituinte ou uma crise de governabilidade, deve-se considerar que o governo ainda é jovem e conta com um sólido reconhecimento social. Soma-se a isso o fato de que ele tem em mãos um orçamento público que foi ampliado pelas reformas tributárias anteriores e pelos lucros da Ecopetrol (petroleira estatal), de modo que a solvência pode ajudá-lo a enfrentar demandas de diferentes frentes sociais. Além disso, conta com grande apoio internacional, fortalecido pelo recente endosso do governo dos Estados Unidos, que chegou a classificá-lo como uma peça-chave na região.
O balanço anterior sugere que o governo movimenta suas fichas para esclarecer e reorganizar as posições em direção ao liberalismo de esquerda. Este surpreendente giro pode implicar em uma mudança na forma de governar, que transitaria da tranquilidade oferecida para o modelo de diálogos e consensos, um processo rumo a um de governo mais turbulento e imprevisível, mas não por isso instável e menos ainda ingovernável – pelo menos não por enquanto. Com isso, sacode pacientemente tudo o que foi tecido pela direita e, ao mesmo tempo, tenta dobrar-se, entre o gritos e a vontade, com as massas populares para que pressionem a favor de seu programa.
Em síntese, pode-se esperar que a administração das crises se normalize, ao passo que através delas surge a possibilidade de validar sua posição preponderante de governo nacional, a partir da qual pode reavaliar constantemente suas forças para favorecer cada uma de suas iniciativas.
A partir do movimento social e popular é necessário entender as correlações de forças e as dinâmicas em jogo para que a mobilização nas ruas se torne visível e force a necessidade de mudanças que possam ir além das reformas e do capital.
[i] A Colômbia ocupa o 81º lugar entre 120, de acordo com a revista Lancet.
[ii] Comunicado à opinião pública através do qual anuncia os novos titulares dos ministérios 26-04-23
[iii] Entrevista à Rádio Caracol, 26-04-23
Edgar Fernández, Centro de Pensamento Crítico e Teoria -PRAXIS