Publicado em Jornal GGN –
Folha distorce um pouco a realidade quando faz autocrítica mas trata como se as irregularidades e abusos praticados na Lava Jato só tivessem saltado aos olhos agora
Jornal GGN – Folha de S. Paulo fez neste domingo (6), no espaço destinado à ombudsman Flávia Lima, uma tímida autocrítica a respeito da cobertura da Lava Jato. A repórter relata que num almoço para comemorar os 30 anos da função, o diretor de redação Sérgio Dávila admitiu que as delações premiadas, com base no “fulano disse que beltrano fez tal coisa”, foram usadas sem critério para fazer alarde quase diariamente.
“Se eu tivesse que revisitar o caso e fazer a cobertura de novo, sei que isso não é possível, talvez repensasse o espaço que demos, manchetes atrás de manchetes…”, disse. “Então, sim, faço essa autocrítica. Mas a postura que o jornal teve em relação à operação, talvez não desde o começo, mas desde que se configurou que eles estavam ultrapassando todos os sinais, eu estou satisfeito com ela”, pontuou Dávila.
O mea culpa da Folha não pode ser desprezado, mas é indiscutivelmente tardio e carregado de uma visão míope dos fatos.
Primeiro porque estabelece como divisor de águas o vazamento do dossiê Intercept, que expôs os desvios de conduta da força-tarefa da Lava Jato. A cobertura crítica, contudo, quase sempre existiu em meios alternativos, seja em blogs independentes, nos sites especializados ou nos veículos estrangeiros. Não é como se grandes jornais como Folha, Estadão e O Globo não tivessem condições de fazer uma cobertura mais equilibrada.
Este GGN, por exemplo, produziu uma série de reportagens mostrando os furos nos processos contra o ex-presidente Lula utilizando, em parte, documentos e vídeos que foram disponibilizados na íntegra pelo Estadão. O material para questionar o que diziam as testemunhas e delatores sempre esteve disponível. Faltou vontade ou coragem para não se curvar à agenda oculta da Lava Jato, que facilmente tomou a grande mídia por “cão de guarda”.
A própria ombudsman da Folha admitiu essa falha quando escreveu que “a imprensa foi transformada, muitas vezes, em linha auxiliar da operação como uma estratégia de angariar suporte” e que “apontar problemas na Lava Jato virou quase um tabu em nome de um objetivo maior: o combate à corrupção.”
Em segundo lugar, ainda que jornais como Folha não quisessem se pautar pela cobertura crítica na mídia alternativa, não precisavam esperar o dossiê do Intercept ser vazado em julho de 2019 – mais de 5 anos depois do início da operação – para começar a apurar melhor os passos controversos da Lava Jato. Os sinais de que as delações premiadas que alimentavam “manchetes atrás de manchetes” não eram confiáveis apareceram muito antes disso.
Só para citar um exemplo: em setembro de 2017, o procurador da República Ivan Cláudio Marx apresentou à 10ª Vara Federal de Brasília as alegações finais do Ministério Público Federal no caso em que Lula era acusado de comprar o silêncio de Nestor Cerveró, com base na delação de Delcídio do Amaral. Marx pediu a absolvição de Lula porque a narrativa construída pelo ex-senador era imprestável, e isso não poderia ser ignorado em “prol de uma cruzada acusatória”.
Essa crítica, que partiu de dentro do próprio Ministério Público, deveria, no mínimo, ter despertado o interesse da imprensa pela veracidade de outras delações.
Folha distorce um pouco a realidade quando faz autocrítica mas trata como se as irregularidades e abusos praticados na Lava Jato só tivessem saltado aos olhos agora. Ao contrário, o dossiê Intercept serviu num primeiro momento para confirmar as convicções dos críticos de sempre. E seguiu dali em diante revelando outras condutas inimagináveis, que deveriam conduzir outros veículos à autocrítica também.
Como disse a ombudsman, esse reconhecimento de que a cobertura foi desequilibrada é “importante”, “mesmo que esse reconhecimento venha muito depois das primeiras ressalvas feitas aos métodos da Lava Jato e num momento (após os vazamentos), em que ficou mais fácil fazer a crítica.”