“Em 2024, 60 anos após o início da ditadura militar, ainda estamos procurando caminhos para descobrir a verdade”. Com essas palavras, a subprocuradora-geral da República, Ana Borges, coordenadora substituta da Câmara de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF), abriu a solenidade de lançamento do Fórum Povos Indígenas: Memória, Verdade e Justiça.
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Foto: Leobark/Comunicação/MPF
O evento na sede da Procuradoria-Geral da República, em Brasília, marca o início de um trabalho que tem por objetivo ampliar o debate em favor de um processo de verdade, memória, reparação integral e justiça para os povos indígenas vítimas de violações cometidas pela ditadura militar e formular uma proposta de implementação da Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV), a ser estabelecida pelo Estado brasileiro.
Coordenado de forma conjunta pelo MPF, pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), pela Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas (Obind) e pelo Instituto de Políticas Relacionais (IPR), o fórum será composto por organizações indígenas, entidades da sociedade civil, representação de órgãos públicos e de instituições acadêmicas. Também irão compor o fórum especialistas em matéria de direitos humanos e outras instituições nacionais e internacionais envolvidas ou interessadas na temática. A adesão é voluntária e está aberta às entidades que concordarem com os termos estabelecidos na Carta de Princípios.
Reparação e não repetição
Ana Borges lembrou que as violações aos direitos de povos indígenas não começaram com a ditadura militar. “Desde o momento em que os invasores aqui chegaram, violações, tragédias e genocídios marcaram a história deste país”. E, embora a Constituição Federal de 1988 tenha sido promulgada a partir de um viés de pacificação nacional, isso não significa esquecimento. “Conhecer a verdade e a história é fundamental para garantir reparação para as vítimas de violências e evitar que os erros do passado se repitam”, concluiu.
Já Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, destacou que o fórum deve servir para discutir também os problemas atuais, muitos dos quais têm origem em questões históricas. “É preciso trazer para o centro do debate as violações e violências que os povos indígenas sofreram e seguem sofrendo, durante o regime militar e ainda nos dias de hoje”, defendeu.
Comissão Nacional da Verdade
As violências cometidas contra povos indígenas pelo regime militar foram mapeadas, de forma inicial, pela Comissão Nacional da Verdade. Divulgado em 2014, o relatório final da CNV contou com um anexo específico para tratar do tema e apontou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos durante o período, apenas entre 10 dos 305 povos originários existentes no Brasil. A Comissão recomendou que o Estado brasileiro assumisse sua responsabilidade pelas violações – incluindo não só as mortes, mas também situações como a remoção forçada de povos originários de seus territórios -, além de instalar uma Comissão Nacional Indígena da Verdade.
Promover a articulação e os debates necessários para a implantação da CNIV é justamente o objetivo do Fórum, como pontuou o procurador regional da República Marlon Alberto Weichert. De acordo com ele, a CNIV deve ser fruto de uma construção coletiva, característica que garante sua legitimidade e capacidade de articulação. Entretanto, a instalação da Comissão está sob a responsabilidade do Estado brasileiro. “É o Estado que tem o dever de investigar, revelar a verdade, reparar e adotar medidas de não repetição”, afirmou.
Nessa linha, Paulino Montejo, assessor político da Apib, lembrou: “de nada adianta a análise da violência cometida, a reparação integral e o objetivo de não repetição se o Estado não se responsabilizar nesse sentido”, disse. “A correção de rumos deverá ocorrer no âmbito de políticas estruturais conduzidas pelo governo”, completou. “No Brasil, nós empreendemos uma guerra silenciosa contra os povos indígenas. É fundamental que essa invisibilidade seja levantada e que tenhamos a capacidade de reescrever a história”, afirmou o procurador da República Marco Antônio Delfino, coordenador do Grupo de Trabalho Prevenção contra Atrocidades contra Povos Indígenas e Formas de Reparação da 6CCR.
Numa solenidade marcada pela emoção, o protagonismo dos povos indígenas em todo o processo de mobilização e debate que resultou na criação do Fórum e o caráter coletivo da iniciativa foram lembrados por Daniela Greeb, diretora geral do IPR, e por Elaine Moreira, coordenadora do Obind. Elas também falaram sobre o papel do pesquisador Marcelo Zelic, do Armazém da Memória, um dos responsáveis pelos estudos sobre violências contra os povos indígenas realizados pela Comissão Nacional da Verdade, falecido no ano passado.
Indígenas, integrantes da Funai, do Ministério dos Povos Indígenas, do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, do Instituto Socioambiental, da Defensoria Pública da União, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania entre outras entidades e instituições, manifestaram apoio à iniciativa durante o evento.
Objetivos
Além de discutir aspectos legais, administrativos, políticos e metodológicos relativos à CNIV, o Fórum tem o propósito de promover o debate interinstitucional e a sensibilização da sociedade brasileira e internacional para revelação da verdade, o resgate da memória, a responsabilização de perpetradores, a reparação integral e a não repetição da violação de direitos humanos cometida contra os povos indígenas. A intenção é promover mudanças estruturais que garantam justiça efetiva para esses povos, o reconhecimento e o respeito pleno a seus direitos fundamentais, territoriais, culturais e sociopolíticos.
O Fórum vai resgatar e repercutir, junto à sociedade, as recomendações da CNV, incluindo aquela que estabelece a demarcação de territórios como forma de reparação. O grupo ainda vai apoiar, estimular e difundir iniciativas de diversos povos originários, já em curso, em prol da memória, verdade, justiça, reparação e garantias de não-repetição, o intercâmbio de experiências com povos de outros países que trabalham as temáticas e fomentar articulações internacionais.
O prazo para apresentação de uma proposta inicial para a criação da CNIV é de 12 meses. A primeira reunião do grupo está marcada para o dia 5 de novembro. Como encaminhamento, as entidades que já integram o grupo deverão iniciar diálogos e identificar outros atores e especialistas que possam vir a participar do Fórum.