Depois do ataque de milhares de bolsonaristas às sedes dos Poderes em Brasília, setores das Forças Armadas esperavam o recurso à GLO (garantia da lei e da ordem) pelo governo Lula, o que permitiria a um general estabelecer um regime de tutela sobre a capital. A repressão dos extremistas por meio de uma inédita “intervenção civil” rompe com a prática usada à exaustão nos últimos anos e pode levar à superação do cacoete secular de tratar militares como responsáveis por sanear os problemas da República.
Por Francisco Carlos Teixeira da Silva, Francisco Carlos Teixeira da Silva, compartilhado de FSP
Passados os primeiros momentos do grande susto de domingo (8), quando grupos bolsonaristas atacaram as icônicas sedes dos três Poderes projetadas por Oscar Niemeyer, começamos a refletir sobre a destruição do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal e a vandalização das duas casas do Congresso.
Os primeiros depoimentos dos presos começam a dar conteúdo àquilo que já sabíamos: (1) Não foi um movimento espontâneo ou uma explosão repentina de ódio que motivou os milhares de bolsonaristas; calcula-se que a mobilização reuniu 20 mil pessoas, das quais ao menos 4.000 participaram do ataque às sedes dos Poderes; (2) Houve não só uma mobilização prévia, que se valeu de meios como WhatsApp e Twitter, como uma ampla rede de suporte com pelo menos 150 ônibus que levaram, boa parte com todas as despesas previamente pagas, os extremistas a Brasília; (3) A PM do Distrito Federal fugiu de suas funções básicas quando seu contingente foi reduzido; mais que isso, uma parcela importante dos policiais do DF apoiou, por ação ou inação, a marcha até os palácios, inclusive escoltando o grupo de extremistas, com quem, em vários momentos, confraternizaram.
Após instantes de perplexidade inicial, o Ministério da Justiça iniciou, ainda na noite de domingo, um decisivo processo de intervenção na Segurança Pública do DF, ordenando a desocupação dos prédios e a prisão dos invasores-depredadores. À ação do ministério, se somou uma cirúrgica intervenção do STF, por meio de decisão do ministro Alexandre Moraes, que conduz o inquérito contra atividades antidemocráticas no governo Bolsonaro.
Assim, a mão pesada da Justiça, vinda do Executivo e do Judiciário, se abateu sobre o governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB), e sobre seu (ausente) secretário de Justiça, Anderson Torres, exatamente um ex-ministro da Justiça de Bolsonaro (que estava na Flórida e, de acordo com um colunista do UOL, visitou o ex-presidente) cuja gestão foi marcada por medidas negacionistas e ameaças à democracia.
Até aí, houve uma certa unanimidade, expressa na aprovação da intervenção federal no DF pelo Congresso e na confirmação, pelo plenário do STF, do afastamento do governador. Rapidamente, Ibaneis Rocha e Anderson Torres foram transformados nos “malvados da ocasião”, a face do golpe e da manipulação perigosa das forças policiais de Brasília.
No entanto, já eram visíveis algumas fissuras na unanimidade em torno das medidas contra o golpismo: além do incômodo do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), com o afastamento do colega do DF, setores militares ligados ao Comando Militar do Planalto e o próprio comandante do Exército, Júlio Cesar de Arruda, estranharam que houvesse intervenção federal, não o recurso —transformado em lugar-comum nos governos Temer e Bolsonaro— ao instituto da GLO (garantia da lei e da ordem), conforme o artigo 142 da Constituição.
Ao preferir o artigo 34 da Carta, aconselhado fortemente por alguns especialistas e com apoio de seu secretário Wadih Damous, o ministro da Justiça, Flávio Dino, descartou o recurso à força militar, amplamente utilizada antes, inclusive pelos governos do PT.
No caso da intervenção no DF e da ordem de controlar e restabelecer a segurança das instituições da República, Dino se distinguiu nitidamente da prática anterior, em especial da intervenção federal no Rio de Janeiro, decretada em fevereiro de 2018, ao que se seguiu o misterioso assassinato da vereadora Marielle Franco em 14 de março, em plena intervenção comandada pelo general Braga Netto, futuro braço direito de Bolsonaro.
Na verdade, os setores militares esperavam o recurso à GLO e, com isso, a indicação de um general para estabelecer um verdadeiro regime de tutela sobre a capital federal. A nomeação de Ricardo Cappelli
como interventor frustrou as expectativas dos militares.
Capelli, jornalista com grande experiência política, foi secretário nacional de Esportes do primeiro governo Lula, secretário de Comunicação de Dino no governo do Maranhão e, apenas uma semana antes, havia sido nomeado secretário-executivo da própria pasta da Justiça. Assim, o ministro enfeixava em suas mãos, firmemente, a segurança da capital, incluindo o controle da PM local.
Tal estremecimento entre entes do governo se aprofundou quando vários vídeos circularam na internet mostrando que a invasão do Palácio do Planalto havia tido uma dinâmica diversa da invasão do STF e do Congresso Nacional. Nestes dois prédios, as guardas locais esboçaram resistência, agentes foram agredidos e, em minoria, tiveram que se retirar. Em alguns casos, no STF e no Congresso, a resistência das guardas locais salvou alguns espaços da completa destruição.
No caso do Planalto, não houve qualquer resistência. Os corpos de segurança que deveriam proteger o prédio arrojado de Niemeyer desertaram das suas funções.
Não só os homens ao dispor do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) não interferiram para impedir a invasão como o ente de inteligência e de previsão de riscos da Presidência não foi capaz, nos dias anteriores, de diagnosticar a ameaça que se avolumava. Ocorre que a invasão, tratada no WhatsApp dos extremistas como um “convite para a festa da Selma“, era um segredo de papel.
Um órgão de inteligência do governo não conseguiu identificar os riscos que se aproximavam da praça dos Três Poderes, embora o movimento nas redes sociais e nas estradas fosse público havia dois dias. Mais ainda, não foram tomadas as medidas daí decorrentes de prevenção. Tal como o caso da PM do DF, os homens colocados para defender o palácio presidencial eram poucos e desavisados, e muitos foram dispensados pelo próprio ministro-chefe do GSI, general Gonçalves Dias, na véspera do ataque.
Essa não era, entretanto, a situação do Batalhão da Guarda Presidencial, lotado no anexo do próprio palácio, com tropas na garagem do edifício, cuja função precípua é a defesa da sede do Executivo. O batalhão é composto de cinco companhias de infantaria de guardas, bem-treinadas, entre as quais a quarta e quinta são especializadas em garantia da lei e da ordem, uma companhia do cerimonial e uma banda de música, com cerca de mil homens.
Ou seja, o Batalhão da Guarda Presidencial, conhecido como Batalhão Duque de Caxias, possui treinamento de choque, equivalente ao da Polícia do Exército, e já participou, inclusive recentemente, de ações contra manifestações de rua em Brasília.
Contudo, em 8 de janeiro, o Batalhão Duque de Caxias não compareceu à festa da Selma. O batalhão não só se ausentou como o coronel comandante entrou em choque aberto, filmado e disponível na internet, com os primeiros comandos de PMs que chegaram ao Planalto para reprimir os extremistas. Mais: o comandante do batalhão deu fuga aos depredadores presos pela PM, gerando uma forte altercação no local entre os dois corpos militares.
Ao longo do horroroso domingo, com os invasores já dentro do Palácio do Planalto, nem o GSI nem o Batalhão Duque de Caxias solicitaram a implementação do Plano Escudo de defesa da capital federal. Somente após a destruição em curso e já com ordens de repressão do Ministério da Justiça, à tarde, o Plano Escudo foi ativado.
Nos dias imediatos aos atos extremistas em Brasília, a ação do ministro da Justiça bateu de frente com a política proposta pelo novo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, para enfrentar os extremistas. Múcio declarou, seis dias antes do ataque, que não retiraria os bolsonaristas dos acampamentos, “uma manifestação da democracia”, onde disse ter amigos e familiares.
Em uma forte disputa com Flávio Dino, favorável a uma resolução firme das ocupações bolsonaristas, o ministro da Defesa defendia uma abordagem gradualista, garantindo que o movimento de sedição bolsonarista iria se extinguir sozinho com o tempo.
Mesmo depois de os bolsonaristas terem provocado uma noite de fogo e destruição em Brasília em 12 de dezembro, dia da diplomação de Lula pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ao que se seguiu a descoberta de terroristas dispostos a explodir um caminhão de combustível no aeroporto da capital, Múcio, com apoio dos militares, continuou defendendo sua abordagem gradualista, que entrou em choque aberto com a disposição do Ministério da Justiça e do STF em aprofundar as conexões dos extremistas com outras autoridades da República.
A estranha festa dessa Selma de mil rostos foi, de imediato, compreendida como uma oportunidade única para o poder civil quebrar a secular tutela militar sobre a República. Desde os anos 1920, o estamento militar brasileiro cultiva uma ideologia de desprezo pelos políticos e pelos civis em geral, considerados incapazes e corruptos.
Por sua interpretação da história da Brasil, desde as batalhas de Guararapes contra os holandeses, em 1648 e 1649, quando o “Exército” (qual Exército?) salvou o país da invasão estrangeira até a Proclamação da República, em 1889, os militares adquiriram um direito de intervir na República e restabelecer o que seria, para eles, a ordem na casa da Selma.
Acreditam, ainda, que o suprimido Poder Moderador do imperador decaído em 1889 migrou para as mãos dos próprios militares, que, assim, teriam o direito e o dever de sanar os males da República.
Contrariamente, as medidas de controle dos últimos acontecimentos, com o uso de policiais militares de estados onde a cadeia de comando não estava quebrada pelo bolsonarismo —como Bahia, Pará, Maranhão e Ceará— e uma inédita “intervenção civil”, sem GLO e sem generais como condestáveis da ordem, sob controle do Ministério da Justiça, marca a nova política do governo Lula e, talvez, a superação do cacoete histórico de uma tutela militar sobre a República.