Por Diego Junqueira, compartilhado de Repórter Brasil –
Campanhas do Ministério da Saúde deixam orientações de saúde em segundo plano, promovem abertura econômica e colocam a cloroquina como protagonista; pesquisadores apontam mau uso do dinheiro público
Desde que assumiu o Ministério da Saúde, há mais de seis meses, o general Eduardo Pazuello gastou pelo menos R$ 88 milhões em propagandas ligadas à covid-19. Um valor considerável, que se justificaria caso fosse usado para informar a população sobre como se proteger da maior pandemia do século. Mas em vez de informações sobre máscaras, distanciamento social e ventilação em locais fechados, há mensagens exaltando os feitos do governo, a reabertura do comércio e até a força do agronegócio.
“O que temos visto nas propagandas é assustador. É o negacionismo como política pública, porque diminui o tamanho do problema. Não deixa claro para a população que estamos em uma pandemia e que isso é grave”, afirma o médico José David Urbaez, da Sociedade Brasileira de Infectologia. Para ele, as propagandas erram ao transmitir à população “um tom de normalidade.” A médica Gulnar Azevedo e Silva concorda: “Se a informação não é clara, a população fica perdida e acha que está tudo bem, que não vai pegar a doença”, diz ela, que é professora da Uerj e presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
A verba gasta em publicidade por Pazuello – valor suficiente para pagar uma parcela de auxílio emergencial de R$ 300 a 293 mil pessoas – é mais alta do que a gasta pelos seus antecessores, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. No total, o ministério já gastou R$ 162,4 milhões em publicidade com temas ligados à pandemia, de acordo com a própria pasta.
Um terço dos R$ 88 milhões gastos por Pazuello – ou R$ 30 milhões – foi dedicado a propagandas exaltando o agronegócio e a retomada das atividades comerciais, segundo apurou a Repórter Brasil e confirmou o ministério. O comercial foi veiculado em rádio, TV, internet e locais de grande circulação – incluindo unidades de saúde – em julho e agosto, quando mais de mil pessoas morriam por dia de covid-19.
“Em meio à mais grave crise da história, um setor foi fundamental para o país. Enquanto muitos tiveram que parar, o agro brasileiro continuou trabalhando”, diz o narrador da propaganda, que traz também o depoimento de uma caminhoneira clamando pelo retorno das atividades. “Vamos voltar, gente, vamos seguir em frente. Só que um cuidando do outro”. Embora as pessoas retratadas nos vídeos usem máscaras, não há informações sobre medidas que poderiam ser adotadas para o retorno seguro das atividades. Outros dois vídeos foram produzidos na mesma campanha, sendo que em um deles uma trabalhadora diz que vai “torcer para que tudo dê certo”.
Para executar esta campanha, o ministério recebeu recursos da Secom (Secretaria de Comunicação Social), órgão que controla a publicidade do governo. No documento de transferência de verbas, os dois órgãos argumentam que a campanha seria importante para “mostrar que a retomada ao trabalho e à vida social se dará com segurança, respeitando os cuidados básicos de higiene e distanciamento”. Porém, nenhuma das medidas de saúde mencionadas foram contempladas nas propagandas.
Questionado pela Repórter Brasil, o Ministério da Saúde disse que a campanha “refere-se ao processo de retomada das atividades no Brasil e que, sendo o agronegócio um setor de grande importância para a população, foi demonstrado que não houve a interrupção das atividades”. A pasta afirmou ainda que os vídeos demonstram “cuidados efetivos”, como “uso de máscaras, luvas, aparelhos de medição de temperatura e álcool em gel.”
Segundo a pesquisadora Janara Sousa, do Laboratório de Educação, Informação e Comunicação em Saúde da UnB (Universidade de Brasília), esses comerciais fogem completamente à pauta do ministério, que deveria focar em temas de saúde. “Que tipo de informação o ministério pode promover sobre o agronegócio? Nem sabia que o agro era um tema da saúde”. Para Nadja Piauitinga, do grupo de comunicação e saúde da Abrasco, a pasta pode até ser questionada pelos órgãos de controle por executar uma campanha sobre o agronegócio, já que “não se trata de publicidade de utilidade pública.”
O Tribunal de Contas da União (TCU) inclusive já está de olho nas ações de comunicação do Ministério da Saúde na pandemia. Em outubro, o ministro Benjamin Zymler determinou à pasta a elaboração de um plano para ações de comunicação. “O controle e prevenção da doença depende em grande medida das condutas dos indivíduos em seu convívio social. Assim, seria esperado um plano estratégico de comunicação para conscientizar a população acerca dos procedimentos a serem adotados quando do convívio social para prevenir a disseminação da doença”. A Repórter Brasil solicitou o documento, mas a pasta disse que o plano está em atualização.
Utilidade pública?
Campanhas como as citadas acima são exemplo de mau uso do dinheiro público, segundo especialistas ouvidos pela Repórter Brasil. Isso porque o orçamento para comunicação do Ministério da Saúde, um dos maiores do governo, deve ser usado em propagandas de “utilidade pública”, segundo instrução normativa da Secom, para “informar, educar, orientar, mobilizar, prevenir ou alertar a população para a adoção de comportamentos que gerem benefícios individuais e/ou coletivos”.
No entanto, nas propagandas ligadas à pandemia divulgadas na gestão de Pazuello, o que se vê são cenas em que o governo ressalta seus feitos no combate à covid-19. Uma delas, batizada de “O cuidado continua” e que consumiu ao menos R$ 35 milhões, mostra a distribuição de verbas, medicamentos, máscaras e ventiladores em diferentes estados.
“Dizer que está mandando dinheiro não é utilidade pública, é propaganda institucional”, critica Piauitinga em referência às propagandas nas quais o governo faz autopromoção de suas ações. A reportagem solicitou à pasta a lista completa de publicidades feitas na atual gestão, mas não recebeu retorno.
Para Sousa, da Unb, “é inédito o Ministério da Saúde fazer propaganda institucional”. Ela afirma ainda que, em plena pandemia, “faz pouco sentido investir em propaganda para promover a gestão federal, ao invés de fazer propaganda de interesse público, como a divulgação das medidas de saúde”.
Piauitinga, que trabalhou na comunicação do ministério entre 2011 e 2016, também lembra que orientações claras e de fácil entendimento devem ser o foco das campanhas publicitárias do Ministério da Saúde, independentemente do assunto. Algo que, em sua avaliação, não vem acontecendo e por isso põe em xeque os gastos com publicidade da pasta. “Dez meses após o início da pandemia, as pessoas não entenderam direito a gravidade do que estamos lidando. E temos propagandas que não ajudam em nada no combate à pandemia,nem instruem sobre como retomar as atividades.”
‘Falsa ilusão’
Outro problema das propagandas veiculadas sob a gestão Pazuello é, segundo Piauitinga, o fato de elas “defenderem, nas entrelinhas, a cloroquina” – mesmo com pesquisas apontando que seu uso pode causar danos à saúde. Desde maio, a gestão Pazuello tentou emplacar o remédio como tratamento da covid-19, e o ministério até incluiu a medicação no protocolo do SUS para casos leves.
Com a “agenda cloroquina” de Pazuello, medidas de prevenção como o distanciamento social, que apareciam com frequência nas propagandas das gestões de Mandetta e Teich, ficaram em segundo plano, já que o protagonismo foi reservado à cloroquina. Na campanha “Coronavírus, tratamento precoce”, o Ministério da Saúde buscou emplacar a hashtag “#nãoespere”, dizendo que quanto mais cedo começar o tratamento, maiores as chances de recuperação.
No entanto, para o infectologista Urbaez, a campanha deveria ser mais clara ao orientar os cidadãos com suspeita ou diagnóstico positivo a se isolarem. “Ninguém com sintomas deveria ir trabalhar ou sair de casa, porque esse é um elemento importante de disseminação do vírus.” Em vez disso, a propaganda sugere iniciar o tratamento precoce, o que, segundo ele, faz as pessoas acreditarem na “falsa ilusão” de que existem remédios contra a covid-19. “Isso desarma a estratégia do isolamento.”
A campanha “#nãoespere” fez parte das preparações para o “Dia D” contra a covid-19, previsto para outubro, quando o ministério pretendia incentivar a prescrição de medicamentos como a cloroquina e a ivermectina. Mas a falta de respaldo científico provocou críticas, e a pasta decidiu cancelar a indicação do chamado “kit-covid”. A publicidade, no entanto, foi ao ar mesmo assim, ao custo de R$ 3,4 milhões, segundo a pasta.
O Ministério da Saúde disse, por meio da assessoria, que o objetivo da campanha é “salvar vidas até a chegada da vacina”. “Os pacientes devem procurar um serviço de saúde assim que sentirem os primeiros sintomas”. Questionada sobre a falta de mensagens a respeito do distanciamento social, a pasta disse que “os estados e os municípios são os entes com competência e autonomia para definir medidas de distanciamento social desde abril, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal.” A Secom foi procurada, mas não respondeu.
“No caso de uma pandemia, informação significa vida ou morte. E o governo precisa engajar a sociedade, porque não consegue controlar sozinho a pandemia. Mas o país se perdeu na falta de uma direção única, é tudo desencontrado”, diz Suylan Midlej, professora de gestão de políticas públicas da UnB. “Isso tem a ver com a falta de liderança no país.”
A comunicação é um dos “pilares” para o controle da pandemia, avalia Urbaez. “É tão importante quanto o isolamento e a testagem, porque as orientações passam por mudanças de comportamento, como o uso da máscara e o distanciamento social.”
*Nota da redação: o texto foi alterado às 19h para inclusão de novo posicionamento do Ministério da Saúde.