Com quantos quilômetros se faz uma mulher?

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Marido quase interrompendo vitória de corredora à beira da linha de chegada é metáfora da existência feminina

Por Júlia Pessôa, compartilhado de Projeto Colabora




A esta altura, o vídeo já deve ter passado por seu feed, timeline, ou qualquer nome que se chame esse lugar onde a gente fica sabendo o que acontece no mundo. Uma mulher prestes a cruzar a linha de chegada de uma meia-maratona quase é interrompida por um homem, supostamente seu marido, que leva duas meninas em sua direção, para “recebê-la”. Contrariando o que o senso comum do patriarcado espera, a corredora desvia das crianças e segue até o fim da prova, que devidamente vence e comemora. Ao fundo, o cara com as crianças parece não entender o que aconteceu e porque a mulher teve a pachorra de desviar da maternidade para continuar sendo o que a prova exigia: corredora.

A atleta é a personal trainer Luciana Grandi Lourenção, que disputou e venceu a meia-maratona Ladeiras da Penha, em Presidente Prudente, interior de São Paulo. As imagens que descrevi foram registradas por uma repórter e compartilhadas no TikTok, de onde viralizaram para outras redes e para a imprensa, inclusive a internacional, causando indignação por onde passaram. Pudera.

Luciana driblando marido e filhas na reta de chegada e, cinco segundos depois, ao vencer a prova: metáfora da existência feminina (Foto: Reprodução / TikTok / @sinomar reporter)
Luciana driblando marido e filhas na reta de chegada e, seis segundos depois, ao vencer a prova: metáfora da existência feminina (Foto: Reprodução / TikTok / @sinomar_reporter)

É óbvio que não sabemos das particularidades e contextos do que aconteceu, mas as imagens são muito emblemáticas por si. Porque sabemos que uma prova de corrida com 21km exige um preparo constante e comprometido. E também porque sabemos que antes mesmo que a prova começasse, uma mulher larga com incontáveis obstáculos à sua frente, sobretudo se for mãe: a expectativa de que ela cuide da casa e das pessoas, os preconceitos no meio esportivo, as limitações profissionais impostas por ser mulher, culpa materna, culpa por não dar conta de tudo, carga mental de organizar sua vida e a dos outros… com quantos malditos quilômetros se faz uma mulher? Como se equaciona a vida de uma mãe corredora?

Ainda que a intenção tenha sido a melhor, por que cargas d’água alguém leva duas crianças pequenas para a pista de corrida de uma prova competitiva, correndo o risco de serem “atropeladas” por atletas já cansados e focados na linha de chegada? O que diriam da situação reversa, de uma mãe levando as filhas para cumprimentar o pai em meio a corredores? “Irresponsável” seria o verbete mais carinhoso, aposto.

Repito: embora não se saiba o que se passou especificamente no caso de Luciana, o vídeo remete a questões muito mais profundas, dolorosas e claro, revoltantes. É esperado das mulheres que elas sejam mães, esposas, cuidadoras e amorosas em primeiro lugar, às custas de todo o imenso “resto” de coisas que são. Por isso foi um anticlímax para o cara do vídeo quando Luciana desvia das meninas e segue para a vitória, por pouquíssimos segundos. E essa é a metáfora perfeita da existência feminina. Espera-se que a gente abdique, sempre, de qualquer vitória ou desejo próprio para atender aos outros: em suas necessidades, aspirações, carreiras, desafios, bem-estar, em suas vidas.

Na meia-maratona da nossa própria vida, se não queremos ter filhos, somos egoístas. Se os temos e ousamos ser corredoras, profissionais, amigas, ou qualquer coisa antes de suas mães (embora concomitantemente), também somos egoístas. E se vivemos para cuidar integralmente deles, somos “sustentadas” por alguém, “não trabalhamos”, “ah, ela fica só em casa”. O mesmo ocorre com qualquer outra decisão que não envolva a maternidade: parece que há sempre um ideal de ser mulher com o qual repetidamente falhamos, e por isso merecemos ter salários mais baixos, menos representantes em espaços de decisão, menos ascensão nas carreiras. Também por isso, somos atacadas nas redes e ruas, estupradas e, no limite, mortas. Apenas por sermos mulheres.

Curiosa que sou, fui procurar Luciana nas redes. A última foto de seu Instagram mostrava uma foto com as duas pequenas e a medalha da meia-maratona. Eu respeito as escolhas de qualquer mulher para sua própria vida, mas espero muito que a publicação tenha vindo de uma vontade de dizer que dá pra ser campeã e mãe, no seu próprio pace. E não de uma prestação de contas com as expectativas de que ela tivesse largado a prova para ir abraçar as meninas.

Mais do que tudo, eu espero mesmo que ela continue correndo. Nos treinos, nas provas e, principalmente, das ciladas do machismo.

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