E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, embarca para um passeio na Baía da Guanabara. Navegando e divagando, a crônica nos leva a um passeio romantizado, sob o olhar de quem navega fora da rotina.
“Depois de três conduções, era chegada a hora de tomar a última, a barca das nove horas da manhã na Estação de Barcas do centro da cidade. Desta vez, ele, um Bucco* que não vivia de bicos mas do magistério, não iria dar uma volta pelo centro para passar o tempo. A pressa em retornar a seu humilde lar faria com que ele não parasse para comprar nem frutas e legumes nem carne moída nem ir ver a magnífica exposição de fotos recém-inaugurada no CCBC (Centro Cultural Banco dos Cappelli*).
Aliás, ele chamava toda aquela pompa de nome de banco maliciosamente de “Buscapé”. Afinal, ter conta ali não era pra nenhum pé-rapado que nem ele mas para a gente fina da cidade. Quantas vezes ele se riu da estranha compensação do capital: nos toma tanta coisa; em compensação nos dá um centro cultural daquele porte supostamente aberto a todo e a qualquer público com grandes exposições de gente daqui e de fora.
Mas também não foram poucas as vezes em que, estando ali no CCBC, se pegou a divagar silenciosamente diante do fato inquestionável de que os seguranças, o pessoal da faxina e os funcionários das cafeterias tinham algo em comum com ele, sendo ou não gente de raiz com origem vagamente italiana conforme parece sugerir o seu sobrenome, o seu e de tantos. Se eles se observassem, se observassem as manchas nos uniformes, correriam risco as grandes obras?
Era a vida prática que dava as car(t)as, sua carne para estranhas maquinações.
Já sentadinho na barca, surgiram-lhe na cachola como velhos sussurros uns conceitos das aulas de geografia do ensino médio. Pipocaram-lhe palavras como cidades-dormitório, movimento pendular, campo-cidade, êxodo rural, uma foto da campanha “O petróleo é nosso” etc. Tudo lhe pareceu fazer mais sentido com o passar dos anos e com a experiência do dia a dia do que nas aulas.
O país, tão mudado, exigia novos conceitos, releituras e metamorfoses dos conceitos antigos ou os velhos e bons conceitos de outrora ainda serviam para investigar a realidade e, se possível, transformá-la? Boa questão, muito boa questão. Que pena que o trajeto tão curto era feito daquela vez em silêncio, solitariamente.
Também lhe vieram trechos de um episódio ainda menos recente, da época em que fora passear na ilha com a família. Ele era garoto e viu passar um cardume de golfinhos. Não imaginava que houvesse no mundo real golfinhos de verdade, para ele até aquele dia isso era coisa de enlatado americano, mas não estavam eles ali a acompanhar o trajeto da barca como se fossem batedores de um grande cortejo?
Olhou de relance pela janela para confirmar o excesso de imaginação e resignadamente quase pensou em voz alta: “Golfinhos não há mais, pelo menos tão ao alcance dos olhos”. Mas tinha ouvido falar que há golfinhos mais saltitantes ainda, sim, escondidos em outros cantos da Baía. Um mero programa de despoluição, por mais mequetrefe que seja, é suficiente para que eles, símbolos da cidade, voltem a reinar sobre as águas, era o que ele sabia de conversar com os amigos da ilha que conheciam do assunto.
E veio a contragosto a constatação de que um programa de poluição eficiente da Baía traria de volta não só os golfinhos mas a reboque a predatória especulação imobiliária. Iam ter que colocar sinal de trânsito de tanto jetski no espelho d´água da Baía pros Cappellis brincarem de dar sardinhas ao Fliper. E os locais que se danassem.
Realmente se deve pensar nos prós e contras de cada questão, no verso e no reverso da medalha.
E este episódio aqui não era ou não era da mesma época da dos golfinhos? Não foi assim, uns meninos do nada não pularam da barca e foram nadar? Tinham fôlego os maloqueiros, pois nadavam até retornar a barca, depois pulavam na água de novo sem medo de serem tragados pelas hélices da embarcação.
Aquilo o impressionou tanto quanto a visão da grande mancha de óleo nas águas que formava uma espécie de arco-íris desmanchado, se é que isso existe. Contando ninguém acredita, é difícil mesmo, mas ele viu e registrou. São coisas assim com as quais a memória voluntaria ou involuntariamente trabalha e contra as quais não há muito o que fazer senão ceder em vez de resistir.
A barca já não era a mesma daquele tempo, é claro. Atualmente elas são climatizadas. A paisagem, descontados os barulhos do motor, é contemplada tão silenciosamente quanto uma pintura, quanto uma paisagem vista da janela de um avião. Houve o tempo em que se podia ir até o fundo da barca e fumar um cigarro tomando vento na cara. E tinha sempre alguém ou alguns fumando um baseado sem incômodos. Ele não era muito de maconha, nunca foi, mas para seu olfato dava um bom blend o cheiro da maconha e o da maresia.
Desembarcou sem pressa na área, no horário. É difícil barca se atrasar, talvez seja um dos meios de transporte mais pontuais que existem no mundo. Ia pelo caminho das pedras que conhecia bem, saudando aqui e acolá velhos amigos.
Estava pensando em consertar a tarrafa. Ou melhor, lembrou-se: a sua tinha sido emprestada a um pescador tão bom de histórias quanto de ofício. Ele ia imaginando que não fosse má idéia reservar um dos dois dias de folga a uma pescaria ao luar. É, ele poderia pescar uma tainha, um pé esquerdo de uma chinela de dedos, quem sabe?
Ou então a tarrafa poderia se enroscar no bico de uma garça, o que o levaria para longe, para uma ilhota próxima, para a ponta da lua, que de vez em quando pinta naquela ilha como quem não quer nada, espantando a todos, inclusive os fantasmas que habitam o casarão de paredes verde-escuras que parece ter sido abandonado pela sorte e que, no entanto, tem resistido a tanto sol e chuva.
Movimento pendular, cidade-dormitório etc. Em dois dias, ele estaria de volta ao batente, ainda que no contra-fluxo, o que facilita as coisas. Ele trabalharia, por suposto, como um Bucco de carga, às vezes sorrindo, às vezes se estressando, com o rumo dos acontecimentos.
Para consolar, lhe veio à mente o velho ditado: “Mar calmo nunca fez bom marinheiro”. E assim ele colocou no streaming um disco bom de Paulinho da Viola. O som do tamanho de uma caixa de sabonetes é tão potente, milagres da tecnologia. E na fila, um de João Nogueira Pinheiro e um da Cristina Buarque. E foi aguar as plantas pra tentar se lembrar com quem estava a tarrafa.”
*Personagem da coluna, Bucco é um “Faz tudo”, que vive em busca de bicos. Sempre antenado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.
*Cappelli – família de classe média, personagem da coluna
Foto: Américo Vermelho, de dentro da Estacão de Barcas de Paquetá
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.