Por Anita Peleja, publicado no Site Pequeno Universo –
*Professora Thai e Anita Peleja
“A caça as bruxas constituiu-se em uma estratégia deliberada, utilizada pelas autoridades com o objetivo de propagar o terror, destruir resistências coletivas, silenciar comunidades inteiras e instigar o conflito entre seus membros. Também foi uma estratégia de cercamento, que segundo o contexto, podia consistir em cercamentos de terra, de corpos ou de relações socias.” (Calibã e a Bruxa. Pagina 381-382)
O Movimento Escola Sem Partido (ESP) é um projeto concebido e divulgado pelo advogado brasileiro Miguel Nagib, a partir de 2004. Tal movimento ganha força, em 2016, principalmente com o advento das redes sociais e em 2018, com a vitória de Jair Bolsonaro à presidência da república, posto ser ele defensor ferrenho do projeto.
Em nossa compreensão, o ESP surge como uma forma de subjugação dos professores ao Estado e/ou interesses das classes dominantes, que visam o controle das práticas educativas nas escolas do país.
Com o pretexto de uma possível “doutrinação ideológica” realizada nas salas de aula por “professores esquerdistas”, a ESP tenta desestabilizar a frágil e potencial relação estudante-professor para impedir a subversão da ordem constituída.
Importante frisar que partimos do pressuposto que, através de uma educação horizontal, democrática, libertária e autônoma, professores, estudantes e demais membros da comunidade escolar podem debilitar o poder das autoridades e do Estado, que se denomina como ordem constituída, o que contraria os interesses das oligarquias brasileiras e internacionais.
Levando-se em consideração o crescimento da ESP, pretendemos com o presente texto traçar formas de resistência a esse movimento, a partir das experiências adquiridas nas ocupações das escolas em 2015. Acreditamos que a horizontalidade e autogestão das relações vivenciadas dentro das ocupações nos permitem traçar caminhos que de fato combatam a ideia principal do ESP, ou seja , dividir para conquistar as escolas.
Considerado pelo próprio STF como inconstitucional, o ESP fere a liberdade de cátedra garantida pela constituição e pela Lei de Diretrizes e Bases, pois questiona práticas cotidianas como a interdisciplinaridade, discussões que relacionem a atualidade com o passado, textos contextualizados e críticos, e até mesmo científicos, além da censura nas discussões sobre a questão de gênero e orientação sexual.
O movimento submete os professores a uma constante vigilância, pois os alunos utilizam gravações ou filmagens das aulas consideradas “subversivas”, que são colocadas nas redes sociais. Em pouco tempo esses materiais são “viralizados”, o que permite a difusão das ideias defendidas pelo ESP para todo o país.
Os professores, em respostas as denúncias de estudantes, demonstram a disposição para também achacar os alunos “mal-educados”, para que os pais os conheçam de verdade. Ou ironizam a denúncia de estudantes, pedindo para que os avisem caso forem filmados para se maquiarem antes, ou discursos semelhantes. Um escracho ao contrário! Essas reações nas redes sociais nada mudam nossa realidade constrangedora e perniciosa, e não abrem nenhum espaço para a problematização dos reais problemas que devemos combater. Uma verdadeira guerra travada entre estudantes e professores que se filmam, se acusam e se odeiam…
E em meio a toda essa “desorganização organizada”, o ESP avança, e, em sua retaguarda estão grandes empresas do ramo da educação. O lobby no congresso é forte e pressionam os deputados a votarem suas pautas. Só o grupo Abril Educação (que recebeu em 2010 um aporte de recursos de R$ 226,2 milhões, com a venda de uma participação minoritária para o fundo de private equity BR Investimentos, do economista Paulo Guedes, futuro ministro da economia do governo Bolsonaro) por exemplo, fatura bilhões explorando o mercado educacional. Além disso, dominar a educação é uma das formas de controlar ideologicamente a força de trabalho, visto que, grosso modo, o principal papel da ideologia é o de naturalizar condições sociais historicamente construídas. É o mecanismo pelo qual o capitalismo se faz parecer justo diante do mar de desigualdades por ele provocado. Desse modo, a ESP mostra que tem partido, sim!
Agora voltemos a 2015, o movimento secundarista organizou uma verdadeira frente em defesa da educação pública no Brasil, resistindo aos projetos privatistas de educação (Reorganização e Organizações Sociais). Com a adesão de milhares de secundaristas, e com um tímido apoio de professores “chaves”, conseguiram, nada menos, que derrubar os projetos de privatização da educação pública pelo PSDB nos estados de Goiás, Paraná e São Paulo.
A ocupação de centenas de escolas pelos secundaristas colocou em xeque não só a privatização da educação, mas denunciou o seu sucateamento, subverteu a convivência no espaço escolar, questionou o autoritarismo das relações entre estudantes, professores e gestores, que, em grande medida, burocratizam e enfraquecem as instâncias democráticas das escolas de participação efetiva da comunidade. As escolas foram ressignificadas com a vivência coletiva dos secundaristas que dormiam, comiam, refletiam, decidiam e agiam em conjunto.
Apesar de estarmos tratando de dois movimentos que possuem um mesmo objeto, a educação, os dois possuem fins divergentes. A ESP retira do estudante a possibilidade de adquirir uma visão política, crítica, científica e até mesmo afetiva dentro da escola, justamente o contrário do que fizeram as ocupações, como já mencionado. O caminho talvez seja o de questionar o lugar de poder que ocupa o professor na escola, rever o discurso de autoridade que faz, nas ações que subjugam muitas vezes os estudantes. Não nos cabe aqui estabelecer uma relação de vítima e algoz ou de culpar alguém, mas de propor a restruturação urgente dessa relação fundamental entre professor e estudante.
A escola e a convivência na sala de aula apresentam-se como espaços para construir ou reconstruir os laços de solidariedade! Desde medidas simples como não determinar os locais em que os estudantes sentam na sala, mas buscar com isso que ele desenvolva ao longo dos anos uma liberdade, em que ele mesmo saiba medir as consequências em relação a sentar ao lado do colega que o distrai durante as atividades, ou sentar na primeira cadeira, ou no fundo da sala. Delimitar as regras através do contrato pedagógico, incentivando sempre a autonomia dos estudantes, para que o cotidiano não se resuma a seguir ordens, copiar tarefas, decorar o conteúdo.
O momento da aparição de conflitos é ideal para que se (re)organizem as ideias, posto que tais ocasiões criam espaços de argumentação e de desenvolvimento de um posicionamento frente ao papel do aluno dentro da escola como sujeito. As regras escolares são parâmetros para uma organização mínima, não devem ser seguidas como cláusulas pétreas. Cada estudante, cada dia, cada aula possui sua própria dinâmica.
As conversas informais, organização de amigo-secreto, de aniversários, resgatar ocasiões de festividades e fortalecimento dos laços de amizade, companheirismo etc, são ações efetivas para o resgate de uma relação saudável em ambiente escolar… Essas ações trazem consigo todo um potencial de estabelecer laços que trazem tanto aprendizado como a resolução de uma lista de 50 exercícios de matemática.
A organização de seminários, exposições e atividades em que os estudantes se estruturem em grupos, estabeleçam as regras e definam o que vão pesquisar, combinem o produto final, são exemplos de ações conjuntas que diminuem o protagonismo do professor, mas oferecem aos alunos a oportunidade de relacionarem sua realidade com o conhecimento escolar.
Acreditamos que o professor deve, por vezes, fugir do âmbito de sua disciplina e incentivar os discentes a reivindicar os seus direitos e o dos funcionários da escola, como por exemplo: Lutar pela permanência de “tias” da limpeza da escola, que são contratadas pelo estado e demitidas sem justa causa; paralisar as aulas em solidariedade à greve dos professores; negar-se a ir para a sala de aula enquanto essa não estiver adequada para receber os alunos; pressionar a direção para que resolva a situação do professor contratado e que não recebe há meses.; participar da luta pelo pagamento do passe livre estudantil, quase sempre atrasado; lutar por mais vagas na escola; reivindicar concurso público para professores e administrativos; exigir uma merenda de qualidade. Esses são alguns exemplos fundamentais para dinamizar o cotidiano da escola, fazendo com que cada ente da comunidade escolar seja parte da instituição de ensino, e possa vivenciar na prática o caminho da construção de um projeto de escola pública solidária.
Não temos receitas prontas e nem estamos afirmando que não existam professores com as posturas aqui relatadas. Mas acreditamos que, assim como nas ocupações de 2015, devemos incentivar os alunos e demais funcionários a ressignificar a escola pública, enchê-la de vida e de momentos em que a comunidade escolar seja valorizada e transformadora de sua realidade. Desta forma, poderemos contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Nós, professores, temos o dever de contribuir para que o estudante entenda que o verdadeiro inimigo não é a sua escola! O Processo é lento e complexo, mas é o único caminho para que projetos como a ESP não tenham força e não se disseminem.