Por Sérgio Amadeu da Silveira em O Cafezinho –
Difusão em massa de notícias falsas é gravíssima para democracia. Mas há algo ainda pior: a crença em que esta prática pode ser freada por censura humana ou algorítimica
Eliminar a mentira da política é possível? A informação distorcida e quase inverossímil, a informação duvidosa deve ser criminalizada no debate político? É viável determinar qual o grau de exagero seria aceitável na disputa eleitoral? Se qualquer uma das respostas for sim, então uma das primeiras providências a adotar é proibir o marketing e as técnicas de publicidade nas eleições. A propaganda, seja comercial ou política, seleciona elementos positivos de um candidato ou produto e os superdimensiona ou os contextualiza de modo a atrair as atenções para algo que não é efetivamente encontrado na realidade. Dito de outro modo, ela exagera, superdimensiona, distorce.
Os governos e governantes só falam a verdade? A resposta é não. Os Estados convivem até mesmo com legislações que protegem ações obscuras alegando defender a sociedade. São as razões de Estado. Para citar um único exemplo, relembro as denúncias de Edward Snowden. O governo Temer só fala a verdade? Parece que não. Apesar dessas óbvias constatações, a Justiça Eleitoral quer barrar a disseminação de mentira na disputa eleitoral de 2018.
Seguindo a espetacularização que tornou-se norma em nossa sociedade, algumas autoridades resolveram seguir o ritmo da política norte-americana e declararam guerra às chamadas “fake news” ou notícias falsas. Não conseguiram eliminar as inverdades, os exageros e as distorções do plenário da Câmara, mas querem eliminá-los na Internet. Dizem que os chineses possuem exércitos prontos a teclar e a postar inúmeras mentiras e notícias falsas para alterar o resultado das eleições. Uau! Quem será beneficiado pelas fake news? Qualquer um que contrate os chineses, a máfia russa, as empresas de negócios escusos na rede. Logo, a propaganda paga, impulsionada ou não, deveria ter sido proibida na Internet, porque ela nunca será transparente diante das mediações algorítmicas das rede.
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Alguns até pensam em modelar um algoritmo que consiga detectar automaticamente as postagens “fakes” nas plataformas sociais. Imagine os parâmetros desse algoritmo de aprendizado de máquina que irá bloquear e excluir as postagens. Seus desenvolvedores deveriam ganhar a premiação máxima da Filosofia, Sociologia, Antropologia e demais ciências humanas, pois conseguiram definir de modo objetivo, algorítmico, o que é a verdade. Desse modo, conseguirão detectar e excluir as inverdades, as adulterações e deformações dos fatos, suas causas e consequências.
Como bem alertou Manuel Castells, no livro O Poder da Comunicação [Paz e Terra, 2015], a crise da democracia representativa abriu espaço para a política do escândalo como o principal modo de luta pelo poder. O escândalo é uma das faces da espetacularização que tudo simplifica para melhor atrair as atenções. Nada é mais “fake” do que o combate às fake news nas eleições. Na verdade, os riscos de censura e de perseguição política dos discursos não alinhados com o poder vigilante é demasiadamente grande. Empiricamente, constato que a democracia convive com grandes mentiras, mas não sobrevive à censura. Basta ver os Estados Unidos: eles sobreviveram à Era Bush e sua desastrosa invasão do Iraque em busca de armas químicas baseada em fake news.
Foucault nos convidou a observar que não há poder institucionalizado sem regimes de verdade, sem os elementos constitutivos daquilo que é aceito como verdadeiro. O poder sempre se apresenta como portador da verdade. Essa constatação não exige nossa adesão ao relativismo ou não implica na inexistência da mentira. É possível definir acontecimentos que ocorreram e os que não ocorreram. As disputas mais importantes, em geral, são sobre por que algo ocorreu e quais as suas consequências. Elas são muitas vezes repletas de torções e excessos. É possível denunciar se um fato ocorreu ou não, mas em geral não é isso que alimenta a disseminação de notícias falsas. A observação das redes mostra que é o ódio e a intolerância. Por isso, para reduzir o compartilhamento de fake news, o policiamento das redes só gerará distorções e a censura seletiva de exageros. As notícias falsas serão reduzidas se não aceitarmos a lógica dos fins que justificam os meios, se desaprovarmos veementemente nossas conhecidas e conhecidos que destilam o ódio, o racismo, a homofobia, a misoginia, o sexismo e o fundamentalismo religioso.