Por Marcella Fernandes, compartilhado de Huffpost Brasil –
Prescrição do vermífugo conhecido como Annita chegou a aumentar 422 vezes, e a venda de ivermectina, outro vermífugo, cresceu 15 vezes.
O comércio de uma série de medicamentos sem comprovação científica para tratar ou prevenir o novo coronavírus cresceu substancialmente no Brasil durante a pandemia, em meio à disseminação de informações falsas sobre supostos tratamentos. Dados do setor farmacêutico mostram que tanto as vendas das indústrias para as drogarias, quanto desses estabelecimentos para os consumidores tiveram um aumento de até 15 vezes na comparação com 2019. As prescrições médicas dessas drogas também subiram.
A lista inclui a cloroquina ou hidroxicloroquina, além dos vermífugos ivermectina e nitazoxanida (conhecida popularmente como Annita) e de vitaminas. A corrida por essas medicações levou a casos de aumento excessivo de preço ou falta dos produtos nas prateleiras para quem precisa usá-los para tratar outras doenças.
Ao longo do ano, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) agiu alterando a exigência de retenção de receita, como um mecanismo de regulação do estoques.
Na avaliação de sanitaristas, a autonomia da agência é limitada e o uso racional de medicação deveria ser orientado pelo governo federal. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro é uma das principais vozes na defesa do uso da cloroquina. A ivermectina, por sua vez, tem sido distribuída com aval de prefeitos.
Em julho, 12.161.477 de caixas de ivermectina foram vendidas pela indústria farmacêutica para drogarias, um aumento de mais de 15 vezes em relação ao volume de vendas do mesmo mês em 2019, 724.666. Os dados foram compilados pelo Sindusfarma (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos), a partir de levantamento da Consultoria IQVIA. Neste mês, a Anvisa derrubou a exigência de retenção de receita para esse medicamento, que havia sido adotada em julho.
Os meses anteriores registraram tendência semelhante. Desde o início de 2020, há um crescimento no comércio do vermífugo. Em fevereiro foram 931.592 caixas vendidas pela indústria contra 687.485 no mesmo mês do ano anterior, uma alta de 26%. Esse percentual foi subindo gradativamente ao longo do semestre, chegando a 1.222% (cerca de 12 vezes mais) em junho, quando 8.637.58 caixas foram vendidas. No mesmo mês de 2019, eram 653.209.
Usado antes da pandemia principalmente para tratar piolhos, o vermífugo também tem sido distribuído por prefeituras nos chamados “kit covid”. Esse tipo de medida do poder público é considerada irregular por especialistas em direito sanitário.
Especialistas alertam também para riscos de efeitos colaterais, interação com outros medicamentos e mudanças de comportamento que podem levar as pessoas a flexibilizarem medidas efetivamente preventivas, como usar máscaras, lavar a mão e adotar o distanciamento social, quando possível.
Antes da explosão de vendas da ivermectina pela indústria no fim do semestre, o comércio de outras drogas também esteve em alta. Em março, foram vendidas 365.016 caixas de cloroquina ou hidroxicloroquina para farmácias e hospitais, mais do que o triplo dos 107.966 do mesmo mês em 2019.
Em abril e maio, os números dos antimaláricos vendidos também foram maiores na comparação com o ano passado, porém em menor proporção. Em junho, houve um recuo.
O uso da cloroquina e da hidroxicloroquina para tratar covid-19 passou a ser adotado no SUS (Sistema Único de Saúde) em abril e tem sido ampliado desde então. Em março, a Anvisa passou a exigir receita para venda da droga em farmácias. O remédio é usado para tratar malária, artrite reumatoide e lúpus. As instituições médicas não recomendam o uso sem acompanhamento devido ao risco cardíaco e à falta de comprovação de eficácia para combater o novo coronavírus.
Em março, as vendas de vitaminas da indústria farmacêutica para farmácias mais do que dobraram. Foram 32.523.632 caixas, ante 11.031.966 no mesmo mês de 2019, uma alta de 194%. Ao longo do semestre, o aumento continuou, porém em menor proporção. Em junho, foram 17.863.959 caixas vendidas, em comparação a 10.822.905 no mesmo mês do ano passado, também de acordo com o Sindusfarma.
Outro levantamento também mostra o aquecimento do comércio de medicamentos de uso off label (fora da bula) na pandemia no varejo. De acordo com dados coletados pela consultoria IQVIA a pedido do Conselho Federal de Farmácia (CFF), entre janeiro e junho, as vendas de hidroxicloroquina aumentaram 49,8% em comparação com o mesmo período do ano passado.
Já o crescimento da ivermectina foi de 297,7% e as vitaminas C e D tiveram majoração nas vendas de 103,6% e 61,9% respectivamente. A nitazoxanida, que passou a ser vendida com retenção de receita desde abril, teve crescimento de 12,6%.
Foi verificado ainda o aumento nas vendas de dexametasona, que atingiu 10,4% no período. Estudos têm mostrado eficácia do uso do corticóide para pacientes com covid-19, mas em casos graves, e o remédio só deve ser usado com acompanhamento médico.
Prescrição médica
Mesmo a exigência de receita não tem freado a procura por alguns desses remédios. De acordo com levantamento feito pela consultoria IQVIA a pedido do CFF pela plataforma de prescrição Memed, o número de receitas explodiu nos primeiros 5 meses desse ano, em comparação com o mesmo período do ano passado.
O crescimento foi de 676,89% (6 vezes) para cloroquina, 863,34% (8 vezes) para a hidroxicloroquina, 1.921,04% (19 vezes) para a ivermectina, 95,17% para a vitamina C, 393,25% (3 vezes) para a vitamina D, e 42.256,52% (422 vezes) para a nitazoxanida. Entre janeiro e maio de 2019, havia 60 mil médicos cadastrados na plataforma. O número de profissionais passou para 120 mil no período. Ainda assim, o CFF entende que o crescimento nas prescrições foi elevado.
O acesso à ivermectina e à nitazoxanida foi facilitado neste mês, com a decisão da Anvisa de revogar a retenção de receita. A agência alegou que não há mais risco de desabastecimento.
Para Adriano Andricopulo, professor de Química Medicinal e Planejamento de Fármacos da USP (Universidade de São Paulo) de São Carlos, a limitação deveria ter continuado. ”O objetivo principal do controle deveria ser como medida para evitar a automedicação – ou seja, pessoas que não precisam desses medicamentos não deveriam tomar sem prescrição médica”, afirmou ao HuffPost Brasil.
O especialista reconhece a relevância da questão do desabastecimento, mas afirma que a busca pelos dois vermífugos ”é sabidamente motivada por pessoas que acreditam em seus benefícios para a prevenção ou tratamento da covid-19″. “Contudo, não há nenhuma comprovação científica ou dados de triagens clínicas em humanos sobre o benefício desses medicamentos no tratamento ou prevenção da covid-19”, lembra.
O professor afirma que, ainda que algumas medicações não provoquem efeitos colaterais graves, o uso sem necessidade e sem supervisão médica deve ser evitado. “Não faz o menor sentido do ponto de vista médico-científico que alguém use um medicamento que nunca funcionou como antiviral e sem qualquer comprovação científica de eficácia contra o SAR-CoV-2. Não vai prevenir a contaminação pelo novo coronavírus e nem tratar a doença em qualquer dos seus estágios”, completa.
Além da ineficácia e dos riscos cardíacos em casos como o da cloroquina, Andricopulo também alerta que, ao procurar soluções sem comprovação, as pessoas podem deixar de lado outros cuidados. “O pior é que as pessoas não estão seguras”, afirma. “São típicos exemplos da procura por soluções simples e sem comprovação porque os dados científicos disponíveis até o momento mostram o potencial desses medicamentos in vitro, mas sem comprovação em estudos clínicos em humanos”, alerta o professor da USP.
O pior é que as pessoas não estão seguras. Não vai prevenir a contaminação pelo novo coronavírus e nem tratar a doença em qualquer dos seus estágios.Adriano Andricopulo, professor de Química Medicinal e Planejamento de Fármacos da USP
É o caso da ivermectina, por exemplo. O discurso para que ela fosse usada para combater o novo coronavírus ganhou força em abril, com a publicação de um estudo na Antiviral Research, que indicou que o fármaco foi capaz de inibir a replicação do SARS-CoV-2 in vitro (em laboratório). Os pesquisadores alertaram, porém, que, para ter efeito em humanos, a dose teria de ser 10 vezes maior.
Os resultados de uma triagem de drogas no Instituto de Ciências Biomédicas da USP divulgados em julho mostram que tanto a ivermectina quanto a nitazoxanida não tiveram desempenho satisfatório. As drogas eliminaram o vírus das amostras, mas também mataram as células.
Para Sandra Farsky, vice-presidente da Associação Brasileira de Ciências Farmacêuticas (ABCF), o aumento da procura pelos fármacos é resultado da falta de coordenação do poder público na crise sanitária. ”É muito ruim o Ministério da Saúde não ter alguém que defenda o que é científico. Todos que trabalhamos com saúde sabemos que tem de ter uma normatização correta baseada em ciência”, afirmou ao HuffPost Brasil
De acordo com a professora da Faculdade Ciências Farmacêuticas da USP, a Anvisa “ficou meio atendendo ao mercado, para não faltar medicamento para quem precisa”. “E aí foi tudo confuso. A gente não tem um Ministério da Saúde totalmente estabelecido. O presidente vai na televisão mostrando que toma esses medicamentos, então fica muito confuso”, completou.
O correto seria ter uma normativa dizendo que não pode [usar medicação para covid-19 sem comprovação]. O médico que quiser prescrever, faria sem apoio do governo. Isso teria coibido muito, mas o que aconteceu foi o contrário. Políticos gastando verba de saúde para comprar ‘kit covid’. Isso foi um erro muito grande e continua sendo.Sandra Farsky, vice-presidente da Associação Brasileira de Ciências Farmacêuticas
No entendimento da especialista, medidas para orientar o uso racional de fármacos deveriam ter vindo do ministério. “O correto seria ter uma normativa dizendo que não pode [usar medicação para covid-19 sem comprovação]. O médico que quiser prescrever, faria sem apoio do governo. Isso teria coibido muito, mas o que aconteceu foi o contrário. Políticos gastando verba de saúde para comprar ‘kit covid’. Isso foi um erro muito grande e continua sendo”, afirma.
Considerando os esforços de produção do setor privado e do governo – no caso da cloroquina e hidroxicloroquina no SUS, Farsky acredita que não há risco de desabastecimento no momento. “A retenção de receita me parece que foi feita para não ter abuso de compra, essa falta de medicamento para quem precisa”, afirma.
A vice-presidente da ABCF alerta que, no caso da cloroquina e hidroxicloroquina – cuja exigência de retenção da receita permanece –, a falta do remédio é mais grave pelo perfil das doenças autoimunes. ”Quando o paciente se adequa a essa medicação não dá para mudar.”