Cometas e Centauros

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Mais uma viagem da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. O autor se põe na estrada da Cometa, viação de ônibus que trilhou os caminhos de sua infância. Na minha, Washington, também. Aliás, Cícero César, eu sou da Vila Maria, em São Paulo, o último ou o primeiro bairro de São Paulo (depende de quem vem ou vai) no caminho da Dutra e lá, na minha Vila, havia uma garagem imensa da Viação Cometa na beira do início da rodovia. Imensa quando eu era pequeno, agora… Mas a história é sua. Senhores passageiros….

“Prezado Washington, tenho uma queda por ônibus. Uma das coisas que mais me ligaram no documentário do Martin Scorsese sobre o Bob Dylan da década de 1970 (“Rolling Thunder Revue”, acho que ainda disponível na Netlflix) foi o fato do grande bardo dirigir o seu próprio Greyhound para ir às cidades da turnê. Para um documentário que lida em forma e conteúdo com o embate entre a realidade e a ficção é um prato cheio para uma conversa.




Mas cada um tem o magic bus que pode, mais do que merece. Eu, por exemplo, morro de amores pelos da Viação Cometa.  Quando eu era pequeno, minha família ia muito a São Paulo em visita à tia Dadá, que morava em Itaquera. Uma das minhas únicas exigências era ir de Viação Cometa.

Naquela época fazendo a tal da ponte rodoviária Rio-São Paulo havia a Itapemirim e a Expresso Brasileiro, carros bons e tal. Mas não adiantava, meu amigo, eles não se pareciam com Greyhounds. Em suma, eu só sabia viajar de Cometa.

Meu pai carinhosamente atendia ao desejo infantil do filho, sem perguntar por quê. Não lhe custava muito, talvez um atraso à toa. Afinal, nada se compara à felicidade de realizar um sonho de criança.

Qual era a razão para tamanho fascínio? Talvez porque os ônibus da Cometa fossem realmente lindos, por dentro e por fora. O que dizer das poltronas vermelhas, a não ser que elas me lembravam as de um cinema?

Viajar de ônibus sempre foi para mim uma sessão de cinema.

Eu peguei a Rodoviária antiga de São Paulo, aquela que possuía toldos coloridos de acrílico. Acho que ficava bem no centro da cidade, não sei ao certo.  Depois peguei aquela nova, maior, feita de muito concreto, bem feita e bem feia quando comparada à anterior.

Em compensação, havia conexão com o Metrô de São Paulo, que me impressionou pelo tamanho, pelo emaranhado de linhas. Perto do Metrô de São Paulo, o do Rio mais parecia um Ferrorama.

Mas embarquemos de volta ao assunto. Certa vez, tirei uns dias de férias em Ouro Preto. Eu já tinha carro, mas a Layla teve que embarcar comigo nessa aventura, meio a contragosto, em um Cometa. Coitada, mal conseguiu dormir durante a viagem, feita de madrugada.

Entretanto, eu não só dormi como acordei mais feliz com o dia claro. Poxa, Ouro Preto, Festival de Inverno, a cidade tocando Milton Nascimento o dia inteiro, pernas-pra-que-te-quero, boa comida, boa gente, amor ao alcance do desejo, aquela vontade de ser feliz, sobe e desce ladeiras, um mendigo dizendo que tinha família, café da tarde, a moçada comandando a cultura e Cometas na estação.

Ouro Preto é longe do mar, é certo. Mas o luar da cidade tem encantos que não são de se jogar fora. Aliás, não só o luar, mas o conjunto da obra. Que casario, que igrejas, que museus! Coisa de se averiguar: não fosse o paulista Mário de Andrade, Ouro Preto teria sido varrida do mapa, completamente esquecida, abandonada pelo progresso mais que estúpido. 

Falando em estupidez, a garagem da Cometa no Rio de Janeiro, que, bato no peito, conheci, pois que ficava ali nas bandas do Andaraí, virou um motel e um supermercado, vá saber.

Quando eu passo por lá, concentro-me mais em ver o que existia do que propriamente existe.  Imagina você fazer compras e do nada perguntar se a fila do caixa passa em Belo Horizonte? 

Não quero nem imaginar o que eu, delirante. pediria à telefonista do motel nos intervalos do amor. Sei lá, uma cachacinha “Milagre de Minas”? Uma porção de Itabirita? (bom nome para uma cachaça, não acha, meu prezado editor?)

A Cometa é fora de série, por suposto. É a coisa mais bonita que há, objeto pelo qual nutro uma espécie de atração irresistível. Você acredita que cheguei a procurar vídeos no YouTube com os ônibus da Cometa?

Ainda não consegui fazer a diferença entre um Dinossauro e um Flecha de Prata, mas tudo bem. Eu não quero fazer parte de um clube tipo “Os amantes da Cometa” mesmo. Meu amor não é bem esse.

Eu poderia lhe falar da São Geraldo, nas minhas idas e vindas a Maceió; da Itapemirim e de suas baldeações, além do Mercedes Monobloco, símbolo de uma época rodoviária;  da Nossa Senhora de Fátima, para Aracaju; da Real Alagoas, para Recife; da Nossa Senhor do Bonfim, para a Bahia; da Penha, para o Sul; da Pássaro Marrom, para Diamantina, para onde fui fazer prova de professor universitário; da Fácil e da Única (nunca foi fácil ser a única!), para Petrópolis.

Cada uma com suas histórias, suas carrocerias lindamente pintadas, suas paradas, suas quebras no meio do caminho, seus motoristas, seus passageiros, seus banheiros apertados mas que tiram gente do aperto, suas luzinhas, suas poltronas reclináveis, seus roncos de motor, suas ultrapassagens, buracos e crateras, seus frios e seus calores, suas cortinas. 

Afinal, são todas elas viações em cujos ônibus os meus destinos se cruzaram com os das estradas.

Mas houve uma viação que me marcou tão profundamente quanto a Cometa. Chama-se Centauro. Quando a conheci, eu estava em Curitiba em um passeio turístico com a família. Turismo em Curitiba é algo inusitado, é ou não é? Mas eu fiz.

Era noite, tínhamos acabado de jantar. Andávamos pela cidade para fazer a digestão.  Por acaso, eu avistei um ônibus prata estacionado em uma garagem. Li o nome na lateral da carroceria: Centauro.  Fiquei imaginando com os meus botões que um dia, um dia, eu iria embarcar em um dos ônibus da viação para conhecer o interior do Paraná. Será que meu pai atendia mais um desses desejos meus?

Tudo se passou em um átimo de segundo, em um pensamento que me ocorreu imediatamente após a leitura daquele nome.

Resumo da história: nada feito. Mal sabia eu que a empresa falira. Muito provavelmente nenhum ônibus dela rodaria mais. Tudo finito. Ficou em mim uma espécie de amor não-realizado cujo arquétipo talvez seja o poema “A uma passante”, de Baudelaire: o eu-lírico vê a mulher, mas a vê desaparecer no turbilhão da multidão, deixando em seu lugar uma espécie de vácuo.

O não-realizado abre em nós a porteira do “e se”, que pode ser muito útil para quem escreve. É isso: mais que amor não-correspondido, amor não-realizado. 

Por derradeiro (depois que o Marco Aurélio, o gigante do Sul, escreveu “Por derradeiro”  o “Por fim” caiu em desuso no meu coração),  inegavelmente uma parte da imaginação vem das viagens de ônibus que fiz em companhia da minha família.

Talvez sem o saber, meu pai fazia modestamente com que eu conhecesse o mundo-Brasil como ele era. Impressões de viagem. Romance de aprendizagem, road movies ao vivo.

O mundo-Brasil, como sabemos, se transformou.

Mas os sonhos são como Cometas e Centauros, unindo as diversas partes do que fui ao que sou e ao que nunca deixei de ser. Por elas sou siderado.

Um abraço, Cícero”

Nota do editor: Este texto não é marchandising. Apenas são reminiscências de um jovem cinquentão. Não ganhamos nenhuma pasagem e nem um centavo sobre o mesmo. Ah, Google, não estamos pesquisando sobre passagens neste momento. Sabemos que não vai adiantar, mas não precisa enviar dicas de empresas de ônibus para a nossa timeline.

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