Comida di Buteco e os caminhos que levam ao botequim

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Tradição boêmia e estranhas novidades em concurso com 132 bares do Rio de Janeiro

Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora




Desde que fui jurado de um concurso Comida Di Buteco em Salvador (lá se vão mais de 10 anos), sempre busco provar, pelo menos, uma coisa nova em um botequim novo – na verdade, em um bar que ainda não conheço. A coisa nova deve ser necessariamente comida com cara de botequim: alguns dos candidatos andam exagerando na gumertização: este ano, temos panier de bobó de camarão, brisket com “mac and cheese”, purê de grão de bico com caponata de berinjela e confit de cogumelo. Só ler ” torresmo desconstruído” me dá até arrepios.

Mas, neste Comida di Buteco 2023, são 132 botequins aqui no Rio de Janeiro – no país, são mais de 900. Como os organizadores, com razão, não rejeitam inscrições, essa lista tem de tudo: de legítimos botequins cariocas, como o Bode Cheiroso, o Rio Antigo ou o tricampeão Bar do David (vencedor em 2016, 2017 e 2022), a estabelecimentos que se classificam como gastrobar; de restaurantes tradicionais e consagrados como o Bar Brasil, o Salete ou o Rei do Bacalhau (no Encantado) a recentes e bem-vindas incorporações à vida carioca como o Pescados na Brasa, o Deza Botequim ou o Sabugosa (para ficar nos que já conheço).

Por razões que também só organizadores poderão explicar, não há sequer um boteco nos bairros onde moro (Leblon) e onde trabalho (Botafogo), duas vizinhanças abarrotadas de bares de todos os tipos, gostos e tamanhos. Para compensar, há cinco candidatos ao Comida di Buteco na ilha de Paquetá, com menos de cinco mil habitantes – como o Zeca’s, que conheci em edição passada do concurso; Cabe registrar que a lista de 132 não é apenas carioca: são 14 representantes de Niterói e 12 da Baixada Fluminense – inclusive o Bar do Portuga, de Nova Iguaçu, campeão de 2021, e a Pasta da Nonna e o Boteco do Teixeira, ambos de Duque de Caxias e, respectivamente, segundo e terceiro colocados no Comida di Buteco RJ no ano passado.

Aprendi com meu pai (aniversariante do dia) que todos os caminhos levam ao botequim. A escolha para conhecer durante o Comida di Buteco pode passar pelos caminhos tortuosos do coração: ano passado, fui aos três bares da Rua Castro Barbosa, no Grajaú, que estavam na disputa, para homenagear um amigo de alma boêmia e com o mesmo sobrenome. Fiquei mais triste e saudoso do que satisfeito com a experiência gastronômica – apesar de a polenta do Bar du Barão ter ficado na memória (o lugar também está no Comida di Buteco 2023). Nem escrevi sobre a incursão ao Grajaú.

Linguiça cercada de lentilhas na Tasca Carvalho, em Copacabana: todos os caminhos levam ao botequim, principalmente durante o Comida di Buteco (Foto: Oscar Valporto)
Linguiça cercada de lentilhas na Tasca Carvalho, em Copacabana: todos os caminhos levam ao botequim, principalmente durante o Comida di Buteco (Foto: Oscar Valporto)

Este ano, por mera comodidade, resolvi dar a largada por um bar de Copacabana ainda, para mim, desconhecido. Não cheguei lá: todos os caminhos levam ao botequins mas eles, muitas vezes, tomam atalhos inesperados. Desabou um temporal assim que desembarquei na estação do Metrô. Foi assim que, guiado pelas marquises, parei na Tasca Carvalho – um dos três bares (seria uma referência a 2022?) da Rua Ronald de Carvalho a participar do Comida di Buteco. Já conhecia o lugar que serve tremoços e salpicão português, delícias um tanto raras de encontrar nesta cidade de São Sebastião.

A tasca dobrou de tamanho – boa notícia – ao incorporar o ponto ao lado, mas ainda merece o nome de tasca: na definição dos dicionários portugueses, “estabelecimento modesto que serve vinho e refeições a baixo preço”. A linguiça portuguesa com lentilhas com bacon, especiarias e ervas (estas duas últimas, tema do concurso deste ano) estava excelente – as referências de especialidades como polvo com chouriço e punhetas de bacalhau também são as melhores. Vinhos portugueses tomam conta da carta.

Todos os caminhos levam aos botequins – confio que eles me guiarão a outros até o fim do concurso em 7 de maio e além. Em recente aula pública, no valoroso Bar Madrid, o professor Luiz Antonio Simas definiu o botequim como a “africanização da botica”. Os antigos pontos de preparo e venda de medicamentos do Rio de Janeiro, propriedades de portugueses de origem modesta, foram incorporando outros produtos, inclusive alimentos e bebidas, e outros clientes como negros escravizados e libertos. A pequena botica virou botiquinha, botequim. E não eram estabelecimentos bem vistos pelas elites. – um preconceito que atravessou gerações.

Neste século, eventos como o Comida di Buteco ajudaram a pavimentar caminhos para livrar a palavra botequim de sua carga de preconceito. Muitos dos estabelecimentos inscritos neste concurso detestariam ser considerados “botequins” cinco décadas atrás. Para os botequeiros mais radicais, qualquer comida elaborada já desclassificaria o lugar como botequim. Os menos radicais acham que o conceito anda realmente amplo demais e temem a gumertização em marcha. Cada alma boêmia, contudo, tem direito a sua definição de botequim: para mim, o fundamental é ter (além de bebida boa e opções para acompanhá-la) um balcão onde seja possível encostar para falar com o atendente ou o vizinho do lado sobre os caminhos tortuosos da vida.

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