Por Marcelo Auler em
Pode até não ser no ritmo que muitos desejavam, mas a sociedade civil brasileira mobiliza-se diante do cenário de ódio e intolerância, que costumeiramente resulta em perseguições, atentados e até mesmo estarrecedores crimes. Não chega a ser uma mobilização de massa, mas de setores importantes da sociedade que pareciam anestesiados.
Exemplo é a iniciativa de 20 personalidades brasileiras que decidiram criar a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, já popularmente chamada de “Comissão Arns”. Uma homenagem ao cardeal emérito de São Paulo, falecido em dezembro de 2016, que à frente da arquidiocese paulista por 28 anos, foi um baluarte na defesa dos direitos humanos.
A comissão será oficializada nesta quarta-feira (20/02), na tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na capital paulista, outro templo sagrado na luta pela redemocratização do país. Será mais um movimento social – como as associações de juristas, de magistrados e de advogados pela Democracia surgidas nos últimos anos – na defesa dos direitos conquistados pelos brasileiros desde a Constituição Cidadã de 1988.
Oficialmente apartidária – em sua composição estão ex-participantes dos diversos governos pós ditadura militar, com diferentes posicionamentos políticos – a Comissão, embora oficialmente não se apresente como oposição ao governo Bolsonaro acabará sendo uma pedra no sapato da ultradireita.
Afinal, foi gestada a partir do “clímax em termo de ódio e intolerância durante a campanha presidencial”, como admitiu seu presidente, o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, ex-ministro de Direitos Humanos no governo de Fernando Henrique Cardoso, Paulo Sérgio Pinheiro.
Com o objetivo preciso de “articular a luta na defesa de uma política de estado de direitos humanos”, é óbvio que a Comissão Arns se posicionará contrariamente à muitas das propostas geradas pela equipe do governo Bolsonaro. Justamente aquelas que afetam os direitos pelos quais a sociedade brasileira brigou ao longo de décadas, até conquistá-los com a Constituição de 1988.
Ou seja, apesar de Pinheiro garantir que “não seremos uma comissão de oposição”, há que se prever certos embates. Um exemplo claro deste confronto foi verbalizado pelo próprio presidente da Comissão Arns em entrevista ao Estado de S. Paulo, ao abordar o projeto de lei do ex-juiz, hoje ministro de Justiça, Sérgio Moro, de combate à criminalidade
“Há várias questões que vão agravar as penas e inchar mais ainda o sistema penitenciário. O Brasil hoje tem mais de 700 mil presos, sendo que 270 mil deles não têm sentença. O Brasil tem a terceira maior população carcerária em termos absolutos”, advertiu ao jornal.
Outro ponto de discordância será com relação aos direitos das minorias, como admitiu ao Blog: “estamos preocupados com alguns projetos e algumas propostas que vão de encontro, quer dizer, se chocam, com este acumulado de garantias de Direitos Humanos. Especialmente para aqueles grupos mais discriminados como a população negra, as mulheres, crianças e adolescentes, a comunidade LGBT, alvo de intensa violência ilegal.”
O embate também fica subentendido na explicação de outro dos fundadores da comissão, o criminalista José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça do governo de FHC: “Entendemos que precisávamos nos organizar para tutelarmos os direitos humanos em grave risco no Brasil“.
De forma mais explícita, aparece no artigo Comissão Arns, em defesa dos cidadãos, assinado por três de seus fundadores/participantes – Luiz Carlos Bresser-Pereira, Luiz Felipe de Alencastro e Maria Hermínia Tavares de Almeida – e publicado nesta quarta-feira na Folha de S.Paulo. Nele, afirmam:
“Essa trajetória (rumo à utopia da Carta de 1988: uma nação socialmente mais justa e respeitadora dos direitos das pessoas), com todos os seus percalços, está hoje em vias de ser bloqueada; as conquistas, sob ameaça de retrocesso. Eleitos pelo sufrágio democrático, o novo governo federal e governos de alguns estados, bem como integrantes da base parlamentar situacionista, têm revelado compreensão acanhada dos direitos de cidadania e visão preconceituosa em relação a valores e comportamentos aceitos em qualquer sociedade diversa e complexa. Sem falar nas suas ideias simplórias, por vezes brutais e ilegais, para atender os justos anseios da população por segurança e paz”.
Na composição da Comissão Arns estão velhos conhecidos. Muitos lutaram juntos contra a ditadura militar. Alguns já passaram por experiências em comissões parecidas, notadamente a Comissão de Justiça e Paz (CJP) da Arquidiocese de São Paulo e a Comissão Teotônio Vilela.
Sua presidente de honra, Margarida Genevois, aos 96 anos, é um ícone da luta pelos direitos políticos e sociais da sociedade. Tem longa experiência na área. Foi por mais de duas décadas braço direito do cardeal Arns.
Além de ter presidido a CJP em diversas ocasiões – onde atuou ao lado de Dias, também ex-presidente da CJP -, Margarida foi da Comissão de Direitos Humanos da USP (1998 a 2002), do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e criadora do Fundo Brasil de Direitos Humanos.
Por se conhecerem há décadas, muitos desses 20 membros da Comissão Arns, como admite Pinheiro, se reuniam com constância para debater os retrocessos na política de direitos humanos no país:
“O que ocorreu é que esse grupo, que vinha se reunindo regularmente desde 2016, foi se encaminhando para uma ação de uma comissão. Ela veio como um passo necessário para articular a luta na defesa de uma política de Estado de Direitos Humanos”.
Ele continua:
Na verdade, o que mais influenciou a decisão de fazer a Comissão foi constatarmos o enfraquecimento da política de Estado de Direitos Humanos, que existia acima dos partidos. Algo que estava em vigor desde a gestão do presidente José Sarney. Todos os presidentes a mantiveram, cada um ao seu lado e à sua maneira, até à gestão da presidenta Dilma. A deposição dela fez com que esta política de Estado fosse terminada. O símbolo disso foi a extinção do ministério dos Direitos Humanos pelo governo Temer”.
Ninguém espere, porém, que a Comissão Arns se torne um balcão de recebimento de denúncias de violações dos direitos humanos, como adverte seu presidente:
“A comissão atuará em casos exemplares e icônicos que venham a surgir, que atentem contra os princípios de direitos humanos consagrados na Declaração (dos Direitos Humanos da ONU), nos pactos internacionais de direitos civis, políticos, econômicos, culturais e sociais e os tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil ratificou até os anos 90. Por exemplo a questão contra a tortura, a violência contra a mulher, os direitos dos portadores de deficiência, etc“.
Seu trabalho será articulado em rede. Em interação com outras comissões já existentes, bem como entidades voltadas à defesa dos direitos humanos e do estado democrático de direito. Atuará em casos específicos de graves violações dos direitos humanos, especialmente nos direitos civis e políticos. “Mais particularmente ainda nos crimes de ameaça, ódio e intolerância cujas amostras graves e trágicas tivemos durante a campanha”, ressalta Pinheiro.
Terá uma certa limitação geográfica/territorial. Dará ênfase aos casos ocorridos no estado de São Paulo. Mas, não descuidará de violações que ocorram em outras partes do país, como acrescenta Pinheiro:
“Evidente, também trataremos de alguns casos exemplares em outros estados. Eventualmente a comissão poderá fazer investigações próprias, mas sempre baseadas nas redes de direitos humanos, nas redes de advogados que foram criadas especialmente a partir do ano de 2018. Mas não temos qualquer pretensão de coordenarmos esta ação em todo o território brasileiro. Muito menos de coordenar o universo de entidades de direitos humanos que se formaram no Brasil graças ao período democrático, pós Constituição de 1988″.
Instaurada na base do trabalho voluntário e do chamado “Pro bono”, a comissão tem planos de buscar recursos/financiamentos em fundações que apoiem a luta pelos direitos humanos, organizações com capacidade de apoiar esse esforço, prevê Pinheiro.