Como a PM paulista tornou-se máquina de assassinar jovens

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Luis Nassif, Jornal GGN – 

De repente, a força tarefa montada para apurar a chacina de Osasco – na qual 19 jovens foram assassinados – foi atropelada pelas investigações da Polícia Militar (PM).

A maior suspeita era de PMs envolvidos.




As investigações da PM atuaram em duas frentes: para atrapalhar os aspectos materiais e para comprometer os aspectos formais da investigação.

Na primeira frente, atrapalharam a colheita de provas e expuseram nomes de testemunhas. A partir do vazamento, todas elas passam a ser juradas de morte.

Na frente formal, caso as investigações levem a nomes de policiais de menor patente, com toda certeza serão anuladas nos tribunais superiores, já que crimes de morte só podem ser investigados pela Polícia Civil (PC). À PM cabe apenas investigar infrações administrativas.

Escancara-se, assim, um dos grandes desafios nacionais, que mais cedo ou mais tarde teria mesmo que ser encarado: o do enfrentamento do poder paralelo incrustado nas PMs, cuja manifestação mais trágica é a extraordinária taxa de letalidade nas suas ações. Em muitos lugares – especialmente em São Paulo – a PM tornou-se uma máquina feroz de assassinar jovens de periferia, escudada na mais absoluta impunidade.

O papel dos P2

Os problemas da PM começaram quando transformaram o P2 em agentes policiais.

Os P2 são uma espécie de polícia judiciária, responsáveis por levantar as infrações disciplinares e propor correções de rumo à polícia. Os PMs usam fardas, os P2, não. Os PMs são cidadãos comuns; os P2, os PMs de confiança.

Gradativamente houve uma alteração na sua atuação, conforme se contará mais à frente, tornando-se a linha de frente das operações extralegais da PM, como agentes de confiança do oficialato.

Essa máquina de assassinato foi montada de forma gradativa.

Na década de 70 consolidou-se a imagem da PC corrupta e da PM violenta. Vem de lá os conflitos entre as duas polícias.

Na linha de frente, os conflitos se manifestavam no próprio atendimento policial. O PM prendia o suspeito, levava para a delegacia e lá havia a primeira frente de conflito.

Há duas espécies de policiais civis.

O policial sério é garantista – isto é, não está lá meramente para apurar culpas, mas para apurar a verdade. Ele precisa seguir o Código de Processo Penal (CPP), requisitar laudos e perícias. Já a PM não se prende a códigos e busca culpados.

Além disso, não havia interesse em fortalecer a PC, porque a própria PM pretendeu desde sempre controlar o ciclo completo da apuração do crime. No passado, houve inúmeros casos de efetivos da PM cercarem delegacias para fazer valer a vontade do oficial, exigindo flagrante em determinados casos, contra a opinião do delegado, que não via motivos para tal.

O problema maior surgiu com a segunda espécie de policial civil, o corrupto.

Ainda na década de 70 a PM deu-se conta de que prendendo o contraventor e entregando-o em uma delegacia – em geral ligado ao jogo de bicho e ao bingo – apenas valorizava a corrupção da PC.

Talvez por efeito-demonstração, as companhias da PM que atuavam na região da Santa Ifigênia começaram a praticar venda de segurança. Havia reuniões formais entre os capitães e comerciantes. Os oficiais alegavam que o Estado não tinha verbas. Os comerciantes montavam então uma associação incumbida de recolher recursos para financiar os PMs. Foi o início de um modelo que se expandiu para outras regiões da cidade e deu início ao crescente mercado de segurança, dominado por companhias de propriedade de oficiais da PM.

Hoje em dia, é comum a venda casada de segurança por essas empresas. Tipo, se a contratarem garante-se pelo menos duas vezes por dia a presença de viaturas da Rota transitando pela região.

A segurança de quem pagava

A venda de segurança começou a dar na vista, porque regiões e cidadãos passaram a ser divididos entre os que podiam e os que não podiam pagar.

Para administrar a opinião pública, a maneira encontrada por setores da PM e das companhias de segurança foi a criação de grupos de extermínio.

Se surgiam problemas em determinada região, mandavam um esquadrão na calada da noite que executava meia dúzia de pessoas, quadrilheiros ou não. A ação servia para alertar os quadrilheiros: mudem-se! Para a população, passava a ideia de guerras de quadrilha.

Aos poucos, o modelo de execução foi sendo aprimorado.

Quando surgem problemas em determinadas regiões nobres, os grupos de segurança privada combinam entre si e aquele de outra região vai até o local, procede à matança e à desova dos corpos em outro lugar.

Esse mesmo procedimento passou a ser adotado por setores da PM.

Quando precisa matar alguém, setores da PM valem-se de três equipes. A primeira, executa as vítimas. A segunda, vai até o local e esconde as provas. A terceira comparece para registrar o crime.

A eficácia do modelo é assegurada por dois instrumentos.

O primeiro, o sistema de gestão avançado, que permite programar a ida ou retirada de policiais da área. Se um grupo de extermínio planeja uma ação em determinada área, basta acionar o sistema para tirar o policiamento do entorno do alvo.

O segundo é a falta de uma polícia técnica independente. O Instituto Médico Legal não tem verba própria. Depende da Polícia Civil, porque até hoje não foi instituída uma polícia científica, conforme preconizado pela Constituição.

No geral, os PMs desenvolvem laços de compadrio com médicos. De posse da escala de médicos, é fácil identificar aqueles menos exigentes nos laudos.

Os crimes de maio de 2006 só cessaram quando médicos do Conselho Regional de Medicina correram para o IML (Instituto Médico Legal) para acompanhar as autópsias. É nesse momento que aparecem as provas mais objetivas que podem levar ao criminoso.

Os crimes de agosto

Não foi por acaso que Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) exigiu providências do governo brasileiro tão logo foram divulgadas as notícias sobre a chacina de Osasco. Nos organismos internacionais, há consenso de que as autoridades públicas perderam o controle sobre as PMs.

A primeira atitude do Secretário de Segurança Alexandre de Moraes foi a constituição de um grupo de trabalho de 50 pessoas, entre policiais civis e procuradores estaduais visando apurar os crimes. Não incluiu ninguém da PM. Parecia que, pela primeira vez, seria rompida a blindagem.

Quando a PM colocou seu bloco na rua, o Secretário calou-se. Dele não se ouviu mais nenhuma palavra, nenhuma declaração.

A chacina de Osasco tornou-se um divisor de águas. Nos próximos dias se saberá onde reside o poder de fato em São Paulo: se no Palácio Bandeirantes ou se no quartel da PM.

Dessa resposta dependem centenas de rapazes de periferia que serão executados nos próximos meses, caso o governo de São Paulo atue de forma pusilânime.

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