Como a proibição às drogas fabrica violência

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Por Martín Granovsky, publicado em Carta Maior – 

Johann Hari investigou a guerra contra as drogas, destacando as histórias humanas perdidas em meio a ela, como a da cantora estadunidense Billie Holliday

divulgação

O escocês Johann Hari foi premiado duas vezes como jornalista do ano pela Anistia Internacional, e continua contando as histórias que escreveu em seu livro Chasing the Scream: The First and Last Days of the War on Drugs (“Na Trilha dos Gritos: os Primeiros e Últimos Dias da Guerra Contra as Drogas”, em tradução livre), publicado em 2015. Ele chegou a Buenos Aires esta semana, para uma palestra no Centro Cultural de Ciência, convidado por um grupo de investigação sobre políticas sobre drogas, e antecipou sua apresentação nesta entrevista ao diário argentino Página/12.




– O que seria falso dizer quando uno analisa a questão das drogas?

– Pensar que a dependência é sobretudo química. Não qualquer um que passa pelo ciclo de consumo, vício e síndrome de abstinência, se for privado de uma determinada substância. Uma pessoa que fratura o quadril tem que ser internada e operada, e logo se sujeitará a doses diárias de diamorfina durante o pós-operatório. De onde deriva a heroína? Da morfina. As pessoas que passa por esse tratamento saem do hospital viciadas em heroína? Não. O que acontece é que a vida costuma ser muito dolorosa e nem todo o mundo sabe lidar com essa dor. Alguns preferem se entregar ao consumo de substâncias. Se os que a consomem têm que enfrentar mais dores, com mais violência ou repressão, tudo será pior. Porém, se a sociedade entender o problema desse dependente, e o apoia, se o ajuda a conseguir um lar e um trabalho, se não o abandona, as coisas podem ser mais fáceis. Já há casos concretos para estudar: Portugal e Suíça mudaram suas legislações e desenharam outro ambiente para os dependentes. Até se abriram à possibilidade de entregar heroína grátis e voluntariamente nas clínicas. O resultado foi a queda do consumo de heroína, não o aumento, porque o dependente, em cada visita, recebe ajuda assistencial. Os suíços demostraram que dar droga desse modo é parte da solução, não do problema. E estou falando de uma sociedade bastante conservadora.

– Como foi que essas pessoas conservadoras passaram não só a entender como também a pôr em prática outro paradigma?

– Pela análise pragmático dos fatos. Os fatos demostravam que a mudança surge da humanização e não do contrário. Por isso eu conto histórias sobre gente. Histórias humanas. O que acontecia antes com os gays? Não eram vistos como qualquer outra pessoa. Isto facilitava o maltrato. Primeiro, é preciso demonstrar que os usuários são pessoas, são como todos nós, e só depois se muda a lei. De outra forma é impossível.

– Isso equivale a enfocar as políticas no usuário?

– Sim. E também em como funciona o circuito completo da violência resultante da proibição às drogas. O mundo vem castigando as drogas há 100 anos. A proibição fabrica violência.

 – O livro conta a história de Harry Anslinger, um estadunidense nascido em 1892 e que se tornou, nos Anos 30, o primeiro chefe do Departamento Federal de Narcóticos. Por que ele foi importante?

 – Ele foi quem inventou a expressão “luta contra as drogas” ou “guerra contra as drogas”, e combinou esse processo de proibicionismo das distintas substâncias, incluindo a cannabis, com um ódio especial contra os afro-americanos e os latinos.

 – A cantora Billie Holliday é outra grande protagonista do livro. Por que Anslinger se obcecou com ela?

 – Para Anslinger, que também era um sujeito com medo de perder o controle sobre si mesmo, e demonstrava uma atitude controladora para com os demais, Billie era o símbolo do que havia de ruim: uma mulher negra que se atrevia a combater o linchamento dos negros.

– E se drogava.

– Sim. Também com álcool. Uma vida com muita dor. Inclusive havia sofrido um estupro. Anslinger foi especialmente cruel com ela. A perseguiu durante anos.

 – Como começou a guerra contra as drogas?

 – Anslinger trabalhava no Departamento do Tesouro quando as bebidas alcoólicas estavam proibidas (Lei Seca). Depois, quando o presidente Franklin Delano Roosevelt acabou com a proibição, os funcionários que se dedicavam ao álcool buscaram justificar seus empregos e seu poder buscando a proibição das opiáceas e da maconha.

 – Ou seja, não foi Richard Nixon o inventor do lema “guerra às drogas”.

 – Não. Começa muito antes. Ao mesmo tempo, foi acompanhada com propaganda segundo a qual se acreditava que os mexicanos ficavam loucos quando consumiam maconha, e os negros tornavam violentos.

 – “O Nascimento de uma Nação”, a película muda e racista de 1915, expõe os negros, mostrando-os como potenciais estupradores.

 – A propaganda negativa da qual falo vai nesse mesmo sentido.

 – Na última campanha, Donald Trump disse que os mexicanos são delinquentes.

 – Os insultos são os mesmos. E as drogas continuam sendo o mesmo problema de antes, mas algo vai mesmo mudar: a cadeia de violência vai crescer. Isso quer dizer que a política iniciada por Anslinger claramente não funcionou, sobretudo nos Estados Unidos. Em seu momento, ela foi muito questionada também fora dos Estados Unidos. Um grande médico mexicano, Leopoldo Salazar Viniegra, disse nos Anos 30 que a maconha não era sequer um tema relevante e que também as outras drogas deveriam ser distribuídas entre os viciados pelo próprio Estado. Naquele então, os hospitais dos Estados Unidos reagiram e deixaram de mandar opiáceas aos hospitais mexicanos, fazendo aumentar a dor e a morte entre os pacientes. Foi uma espécie de extorsão. A violência gerada pela suposta guerra contra as drogas é uma catástrofe.

 – Essa catástrofe tem algum momento ou aspecto a ser destacado?

 – Não. É uma catástrofe de construção lenta e permanente. Uma catástrofe que em muitos países produziu mais mortes que qualquer guerra. Se eu e você entramos em um mercado e roubamos garrafas de vodka, se somos descobertos, o dono chama a segurança e nós seremos presos. Mas se vamos à casa de um fabricante de cocaína e ele descobre que estamos roubando vários quilos, obviamente não chamará a polícia. Como é uma substância proibida, ele terá que resolver o problema sozinho, e exercerá ele mesmo sua própria violência contra nós. Pior ainda: é provável que ele já tenha exercido esses atos de extrema violência antes, para que nós não nos atrevamos a cometer algum tipo de engano ou roubo. E certamente financiará o aparato necessário para justificar a violência com o comércio ilegal de drogas. A guerra contra as drogas cria a guerra em busca das drogas.

 – Nessa ordem?

 – Sim. Todos sabiam quem era Al Capone e o temiam. Alguém teme ao senhor Heineken? E falo em termos de violência, não de alcoolismo.

– O México aparece muito no livro. Na origem do proibicionismo norte-americano e em sua política de guerra contra as drogas dos últimos anos.

 – É um dos grandes exemplos do fracasso dessa política. Em alguns Estados, não há chefes narco assassinados pelos cartéis. Investiguei muito a razão. Como podia não haver narcos assassinando outros narcos em meio a uma disputa por território? Um dia, um entrevistado me disse que isso era muito simples: “eles pagam a polícia para que matem os rivais”. Assim, vemos também como a renda dos policiais provém do cada vez mais rentável lucro das drogas. Por isso, a pergunta mais importante hoje no México não é quantos mortos as drogas produzem.

– Qual seria essa pergunta, então?

 – Quanto mortos são produzidos pela guerra contra as drogas. São centenas de milhares de vidas perdidas. Quando vamos assumir que foi um grande fracasso? Não há país no mundo que tenha triunfado sobre na base da proibição e da guerra. No Vietnã, chegaram a levar os dependentes a campos de concentração. Resultado? Um fracasso. Foi remando contra essa corrente que, há treze anos, Portugal despenalizou o consumo de drogas. Nesse momento, havia 1% de viciados em heroína em sua população. Havia muitos presos, a polícia prendia muita gente. Um dia, o primeiro-ministro e o chefe da oposição se reuniram, trocaram informações sobre os fatos reais, e chegaram à conclusão de que algo não estava funcionando, e então decidiram mudar. Quem foi importante para que essa guinada das políticas portuguesas desse certo foi João Goulão, que dirige o Serviço de Intervenção em Comportamentos Aditivos e Dependências.

Guerra e paz

Goulão é outro personagem do livro de Hari. Entrevistado pelo jornalista, o português explicou que o novo sistema não consiste em somente acabar com o castigo penal e deixar que as pessoas voltem para casa e pronto. Portugal avaliou o orçamento da maquinária de guerra e o converteu na base para a maquinária da paz. Nos Estados Unidos, a guerra contra as drogas consome 90%, e a paz os outros 10%. Portugal inverteu essa cifra. Sobre Goulão, Hari diz que “ele pensa que se a pessoa se livra do estigma e da vergonha causadas pela criminalização do vício, fica mais fácil convencê-la depois a aderir a uma rede de cuidado, tratamento e apoio”.

Hari supõe que, além da vontade de mudar o foco das políticas, Portugal tomou outras medidas para que as novas políticas funcionassem, trabalhando para que os viciados não formassem guetos.

– Para os não viciados, os viciados não eram os “outros”. Eram pessoas como eles. Havia até familiares de políticos importantes, que evidentemente não podemos revelar.

– E na Suíça?

– Lá também se trabalhou contra os guetos. Isso ajudou a que se pensasse: “se isso acontece com essas pessoas, pode acontecer com qualquer um”. Essa forma de raciocinar é sempre um grande avanço. Permite usar o dinheiro que antes se usava para proibir, prender e condenar para fins de prevenção e tratamento. Os suíços implementaram também um programa de microcréditos para dependentes, e funcionou. Um dos pontos centrais da ideia é dizer “vocês são pessoas valiosas, queremos cuidar de todos”. Assim, caiu o número de casos fatais, não há mais mortes por overdose de heroína, e os suíços também diminuíram a transmissão de doenças como a AIDS. E tudo isso foi conquistado através de votação, um plebiscito, onde 70% dos eleitores aprovou o novo sistema.

– Por que?

– Porque viu que o índice de criminalidade caiu. Pragmatismo puro. Outro caso em que permitir o acesso às drogas é parte da solução e não do problema.

Hari conta em seu livro que parte de sua família é de suíços – ele é filho de um montanhês dos Alpes. Os suíços não são delirantes, e sim gente capaz de “dizer severamente que dar a descarga depois das dez da noite é um delito, porque poderia molestar os vizinhos”. Neste caso, o personagem é Ruth Dreifuss, a primeira judia em chegar à presidência da confederação. Antes, como integrante do Conselho Federal, nos Anos 90, foi a encarregada de desenhar uma política de drogas baseada na prevenção. Segundo Hari, ela foi a primeira pessoa desse nível no mundo, desde os Anos 30, “que decidiu não se omitir diante da reforma da política de drogas, pelo contrário, a colocou entre suas prioridades”, passando a conversar com dependentes, interessada em conhecer os seus problemas. Já havia feito isso no começo da mesma década, como encarregada da área de Saúde, quando encarou as cifras que apontavam a Suíça como o país europeu com mais mortes por HIV, proporcionalmente. O resultado foi o oposto do que, segundo Anslinger, seria o esperado. “O dependente de opiáceas continuará nessa condição, e numa taxa acelerada de consumo, a menos que esse processo seja freado por uma força externa”, escreveu o proibicionista, numa de suas regras. Os suíços descobriram que, no começo, tudo acontece como dizia Anslinger, mas que, meses depois, essa tendência ao aumento do consumo começa a se reverter, levando a uma diminuição menos acelerada, porém constante.

Hari está longe de ser um predicador, mas não duvida quando recebe um pedido de conselho:

– É preciso estudar todas as experiências e não repetir as que falharam, levando a um aumento da violência e das mortes. O melhor é provar as que deram certo.
 

Tradução: Victor Farinelli

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