Como acender velas ao diabo, sem arrependimento

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Enio Squeff, jornalista, escritor, artista plástico – 

De todos os adjetivos na ordem dos xingamentos que Bolsonaro fez por merecer neste pouco mais de um ano de desgoverno, um não foi usado até o momento: “militar”. Ele é um autêntico homem formado pelos quartéis brasileiros e quando diz que a “pátria está acima de tudo e de todos” – sabemos que é apenas uma palavra sem ordem alguma, uma mero slogan.

Os militares brasileiros nunca foram castigados pelos crimes que cometeram durante a ditadura. Mas como detêm o monopólio da força, acham que a sociedade que eles dominaram pelas armas, vai esquecer seus abusos. deslembram-se que seus (e os nossos) heróis são ou deveriam ser Rondon, Lott, ou mesmo Osório. E tudo para relevar um reles torturador, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.




Só que não conseguirão reescrever a história, como o general Mourão insiste em querer fazer. Para ele, a história da ditadura tem bons e maus momentos. Sugere que esqueçamos os maus. Impossível.

Ser militar no Brasil poderia, em suma, não ser um adjetivo, mas cada vez mais assume contornos de uma realidade vernacular que, como país, talvez não merecêssemos. Os próprios militares inclusive.

Começa por seu complexo de superioridade. Millôr Fernandes, ao fim da ditadura, dizia uma verdade incontestável: quem concedia a um general uma superioridade em si mesma sobre os outros mortais, e por ser general, era, antes de tudo, um cretino.

Lembro-me de um amigo que era instrumentista da banda da Força Aérea lotada em Porto Alegre. Estávamos nos idos de 60. Éramos colegas no curso de clarinete, na Escola de Artes, e meio distraído, sem muita curiosidade, inquiri-o, certa vez, sobre o golpe que acabava de acontecer. Ele, rindo disse algo que nunca me esquecerei: “Vocês paisanos vão saber agora o que é governar”. Disse sorrindo, numa boa, como se diz hoje em dia.

Foi para mim, de fato, e para o povo brasileiro uma experiência inesquecível, as prisões, os exílios, as mortes.

Mas devo adiantar a propósito, naqueles tempos sombrios em que os alcagüetes pululavam em qualquer local, escola ou palácio,  que nunca me denunciou como “subversivo” (era esta a palavra mágica com que os milicos achavam de prender quem quer que fosse e que não rezasse pela sua cartilha feita em Washington); e isso embora soubesse de minhas ideias. Era um bom clarinetista e até quanto sei, um bom homem, como se pensam e até devem ser a maior parte dos fardados do Brasil.

Vem daí, porém, que se excluem da sociedade que lhes paga seus soldos (soldado vem de soldo, não esqueçamos) como se fossem iluminados por Deus para exercerem a tutela do Brasil; e como se lhes devêssemos tudo, inclusive nossas vidas, não só por usarem fardas, bater continência, cantarem (em geral, muito mal) o hino nacional e eventualmente produzirem homens como Bolsonaro e seu vice, o general Antonio Hamilton Martins Mourão.

Napoleão, modelo de militar para qualquer militar, sabia que a inteligência ou o discernimento não eram bem as virtudes valorizadas pelos homens que vivem em casernas. Defendia que guerras não se vencem com armas, mas com o espírito.

Entenda-se: para um dos maiores generais da história, não eram os militares que se exceliam de glória nas vitórias militares, mas o pensamento, essa coisa esparsa, difícil de definir, mas que, de qualquer modo, nunca foi a sujeição pelas armas.

Hoje temos a nos governar, um sujeito que se diz e até é tratado como militar. Humilhou vários generais, como a se vingar da corte marcial a que foi submetido, por um ato terrorista que planejou, mas que foi descoberto a tempo. E da qual, aliás, só se livrou de uma condenação pelo espírito de corpo imperante entre os homens de farda.

Temos assim, que as Forças Armadas, para não purgarem o que fizeram na ditadura de 21 anos, em vez de reverenciarem autênticos patriotas, que eles já tiveram, preferem acender velas a reles torturadores, como foram os coronéis Ustra, o  capitão Albernaz, ou até a delegados como Sérgio Paranhos Fleury dentre muitos outros.

E, acima de tudo, aceitam como parte do seu ser militar, entregarem a Base da Alcântara aos EUA,  desistirem de fazer do Brasil uma potência como foi desenhado por Lula, entregando o pré-sal, a Petrobrás, a Embraer e por aí afora.

Concluir que somos um país ocupado pelas nossas  próprias Forças Armadas  pode ser um exagero. Mas não o será se os funcionários públicos fardados saírem em defesa de um homem que até ontem era tido como um militar desonrado. Daí, porém e então, a expressão “militar” irá assumir-se, desairosamente, como adjetivo sem complemento algum para explicitá-lo.

Sem Título, 2020 | monotipia em óleo sobre papel canson, 30×21 cm | Enio Squeff Ateliê & Arte

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