Inquérito da PF aponta participação de ministro, assessores, agência de promoção de exportação, gabinete de documentação histórica, além do uso do avião presidencial e uma tentativa de cooptar o Itamaraty em Orlando.
Por Sofia Fernandes, compartilhado de DW
na foto: Ex-presidente Jair Bolsonaro recebe palmeira dourada na Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, no Barhein, em novembro de 2021
Mesmo depois do fim de seu mandato, o ex-presidente Jair Bolsonaro teria usado membros de sua equipe e recursos estatais para assegurar que as joias recebidas de autoridades estrangeiras, cujo valor é estimado em 6,8 milhões de reais, permanecessem fora do radar oficial. Isso é o que indicam documentos e conversas obtidos pela Polícia Federal.
O inquérito que trata do desvio das joias sauditas, tornado público na segunda-feira (08/07), após decisão do ministro Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, descreve a formação de uma suposta associação criminosa para desviar para o patrimônio pessoal de Bolsonaro os presentes que ele recebeu na condição de chefe de Estado. O texto detalha como órgãos e membros do governo brasileiro teriam sido acionados para o plano em ao menos três ocasiões diferentes.
Além dos 12 indiciados pelos crimes de peculato, associação criminosa, lavagem de dinheiro e advocacia criminosa – como o próprio Bolsonaro e assessores próximos, o ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque e o ex-secretário da Receita Federal Julio Cesar Vieira Gomes –, outros funcionários e estruturas do Estado foram convocados nas tentativas de desviar as joias.
É apontado o uso de avião presidencial, atuação do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal da Presidência da República, participação da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e investimentos (Apex), além de uma tentativa de influência no consulado do Brasil em Orlando.
De acordo com o relatório, o esquema funcionou pelo menos desde outubro de 2019. Na época, Bolsonaro esteve na Arábia Saudita, onde recebeu de presente o conjunto de joias denominado “kit ouro branco”, formado por um anel, abotoaduras, um rosário islâmico (masbaha) e um relógio da marca Rolex, de ouro.
A PF afirma que esses itens foram desviados por Bolsonaro, seu então ajudante de ordens, tenente-coronel Mauro Cesar Cid, e pelo e pelo então chefe do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH), Marcelo Vieira.
As joias foram trazidas em bagagens diplomáticas, o que dificultou a fiscalização alfandegária e permitiu que fossem desviadas sem a devida declaração às autoridades competentes, relatou a PF.
O uso de veículos oficiais, como o avião presidencial, e o envolvimento de funcionários públicos faziam parte do esquema e facilitava o transporte e armazenamento das peças em locais seguros, longe da supervisão dos órgãos de controle.
Ministério de Minas e Energia, Receita Federal e Gabinete de Documentação
Em outubro de 2021, o então Ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, recebeu um conjunto de joias masculinas em ouro rosé cravejado de brilhantes e um conjunto de joias femininas durante viagem à Arábia Saudita, na qual representou o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Na volta, o ministro e seu assessor ignoraram a opção de declarar as joias como bens destinados ao patrimônio da União na aduana. As joias femininas foram descobertas na mochila do assessor durante uma inspeção em Guarulhos. O oficial da alfândega as reteve justamente por não terem sido declaradas.
Já o kit masculino passou despercebido e ficou escondido por mais de um ano no Ministério de Minas e Energia, com a ajuda de José Roberto Bueno Junior, assessor do ministro, conforme relata a PF.
Em novembro de 2022, os investigados usaram o GADH para “legalizar” e viabilizar o desvio das joias e do relógio que compunham o conjunto de joias para incorporação ao acervo privado do ex-presidente.
O secretário especial da Receita Federal Julio Cesar Vieira Gomes foi indiciado por também ter supostamente ajudado a incorporar ilegalmente as joias ao patrimônio pessoal do ex-presidente e, dessa forma, “patrocinou diretamente” os interesses de Bolsonaro, diz a PF.
Em uma das mensagens encontradas no celular de Mauro Cid, Gomes escreve: “Avisou ao presidente que vamos recuperar os bens?”.
Uso do avião presidencial, Itamaraty e Apex
Segundo a PF, essas joias saíram depois do país em uma mala transportada por Mauro Cid no avião presidencial em 30 de dezembro de 2022, quando Bolsonaro abandonou a Presidência para passar uma temporada nos Estados Unidos ao fim de seu mandato.
Em de fevereiro de 2023, o kit foi colocado em leilão em Nova York, só que não foi arrematado.
A investigação da PF identificou que esse modo de agir foi utilizado para retirar do país pelo menos três conjuntos de bens recebidos pelo ex-presidente em viagens internacionais, na condição de chefe de Estado. A troca de mensagens entre Mauro Cid e Bolsonaro revela que o ex-presidente tinha conhecimento dos leilões realizados nos Estados Unidos para vender as joias.
“Após o segundo turno das eleições presidenciais, frustrada a tentativa de Golpe de Estado em curso naquele momento (…) o ex-presidente Jair Bolsonaro decidiu sair do país com destino aos Estados Unidos. Dentro de sua estratégia, o ex-presidente levou para o exterior quase a totalidade de seus recursos financeiros, que estavam disponíveis para imediata movimentação, transferindo 80% do montante depositado em contas bancárias no Brasil para sua nova conta no Banco BB Américas sediada em Miami/FL”, diz o inquérito.
“Além disso, [Bolsonaro] determinou o envio, ao exterior, de bens de alto valor patrimonial, entregues por autoridades estrangeiras, para serem vendidos de forma escamoteada, longe do alcance das autoridades brasileiras”, completa.
De acordo com as mensagens obtidas pela PF, Mauro Cid levou consigo uma mala que deveria ter como destino a casa de seu pai, o general do Exército Mauro Cesar Lorena Cid, que chefiou o escritório da Apex em Miami de junho de 2019 a janeiro de 2023. No cargo, ele usou a estrutura do órgão para apoiar movimentos golpistas no Brasil.
O reflexo do rosto de Lourena Cid aparece, inclusive, em uma das fotos identificadas pela PF e que foi usada para negociar a venda, nos Estados Unidos, de esculturas recebidas pelo governo como presente oficial. Tratava-se de uma palmeira e um barco dourados. Depois de consultar especialistas nos Estados Unidos, os bolsonaristas descobriram que elas não tinham valor no mercado por não conter ouro em sua composição.
Como o avião presidencial chegou em Orlando, era preciso encontrar meios de enviar a mala para Miami, a 380 quilômetros, onde morava Lorena Cid. Foi então que Mauro Cid tentou usar a estrutura do Itamaraty para esse deslocamento.
O ajudante de ordens mandou mensagem para então vice-cônsul do Brasil em Orlando, Marcela Magalhães Braga, no dia 30 de dezembro, pedindo apoio para levar a mala de Orlando para Miami. Ela foi auxiliar da ex-primeira dama Michelle Bolsonaro. No entanto, o plano não se concretizou, e Mauro Cid contratou alguém para fazer o transporte.
PF também relata que o general Mauro Lourena Cid repassou 25 mil dólares em espécie ao ex-presidente, valor oriundo das joias.
“Os elementos de prova colhidos demonstraram que Mauro Cesar Lourena Cid recebeu, em nome e em benefício de Jair Messias Bolsonaro, pelo menos US$ 25 mil, que teriam sido repassados em espécie para o ex-presidente, visando, de forma deliberada, não passar pelos mecanismos de controle e pelo sistema financeiro formal”, diz a PF no documento.
“Operação resgate”
Após a repercussão na imprensa do recebimento de kits de joias por integrantes do governo brasileiro em nome do ex-presidente, a PF identificou que os envolvidos estruturaram uma operação para resgatar os bens.
Já era um novo governo, Bolsonaro ex-presidente, e as joias estavam em estabelecimentos comerciais nos Estados Unidos, como casas de leilão. Elas deveriam retornar ao Brasil e serem devolvidos ao governo brasileiro, pois o Tribunal de Contas da União havia determinado a devolução ao Estado brasileiro.
O kit masculino em ouro rosé foi transportado de Nova York para Orlando, onde Bolsonaro estava hospedado no início de 2023. Em seguida, o kit foi transportado para o Brasil e entregue, em 24 de março de 2023, na agência da Caixa Econômica Federal, em Brasília.
Para resgatar outro kit de joias, Mauro Cid desembarcou no dia 27 de março de 2023, pela manhã, na cidade de Fort Lauderdale, no estado americano da Flórida. Pegou os itens de luxo e, no final do mesmo dia, retornou ao Brasil. Ao chegar ao aeroporto de Brasília, entregou o kit a Osmar Crivelatti, outro assessor de Bolsonaro.
Desse conjunto de joias, fazia parte um relógio da marca Rolex, de ouro branco, que teria sido recuperado de outra loja no estado da Pensilvânia. Segundo a PF, uma pessoa ainda não identificada recuperou o Rolex, que foi devolvido no dia 4 de abril de 2023 em uma agência da Caixa Econômica Federal.
Um terceiro conjunto de joias, que teria sido negociado pelos investigados, ainda não foram localizados. “As investigações prosseguem”, informa a PF.
Mensagens entre o assessor especial coronel Marcelo Camara e Mauro Cid indicam que outros presentes recebidos por Bolsonaro podem ter sido vendidos, sem respeitar as restrições legais. Um deles “sumiu”, inclusive, “com a dona Michelle”, em referência à ex-primeira dama.
Michelle Bolsonaro não foi indiciada no inquérito. Ela foi apontada como destinatária de algumas das joias, mas a PF não encontrou provas sobre seu envolvimento nas negociações em torno das joias que chegaram a ser vendidas.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) tem até 23 de julho para manifestar sua decisão em relação ao inquérito, se irá arquivar o caso, pedir investigações adicionais ou denunciar os envolvidos ao STF.
A defesa de Bolsonaro afirma que os presentes ofertados à Presidência da República “obedecem a um rígido protocolo de tratamento e catalogação”, sobre o qual “o Chefe do Executivo não tem qualquer ingerência, direta ou indireta”.