É preciso fortalecer as instâncias mediadoras da modernidade que coajam e constranjam os bolsonaristas a respeitarem os acordos de convivência social
Por João Lorandi Demarchi, compartilhado de Le Monde Diplomatique
Theodor Adorno, o filósofo alemão, em um famoso texto proclama que toda educação após a Segunda Guerra Mundial deveria ter como objetivo que Auschwitz não se repetisse. A metonímia do campo de concentração servia para defender uma nova formação humana que visasse desbarbarizar a sociedade europeia, impedindo a repetição do nazismo.
No Brasil, depois das eleições de 2022, precisamos de uma estratégia para que a cloroquina não se repita. A metonímia aqui representa o negacionismo e sua vontade de destruição. Evitá-la significa defender uma repactuação social que impeça a repetição do bolsonarismo. Se não podemos esperar o tempo da educação para formar novas mentes, como quis Adorno, precisamos contar com outros meios para combater esse comportamento perverso.
Quem esperava que Lula, assim que eleito, propagasse ataques públicos e vociferasse vingança àqueles que o perseguiram e – como decidiu o Supremo Tribunal – o prenderam injustamente, se enganou. O Lulinha continua paz e amor. Isso se dá porque, assim como as mais de 60 milhões de pessoas que votaram nele, seus afetos são opostos daqueles que fundamentam o bolsonarismo. A própria campanha eleitoral deixa perceber que os sentimentos que agregaram a frente ampla em torno da candidatura do petista foram predominantemente de esperança, amor, reconstrução e otimismo. Enquanto do outro lado estava e ainda está o ódio, o rancor e a perseguição quixotesca a diversos demônios.
Como preconizou Freud, o processo civilizatório é caracterizado pelo controle e recalque dos nossos instintos primitivos: o cidadão aprende a domar seus desejos mais vis para viver em sociedade.
Desse modo, as diversas formas de expressão do ressentimento que movem os bolsonaristas representam uma regressão. Os afetos bolsonaristas são anti-civilizatórios e se codificam em símbolos que permitem o retorno do recalcado, tal como a obsessão pela arminha-fálica e o investimento libidinal em uma liderança que representa a paternalidade protetora e infalível, que nem sequer broxa. Passar a boiada por cima do meio ambiente, desestimular a vacinação, incentivar o garimpo ilegal, desmontar as políticas públicas são antes de tudo expressões da pulsão de morte que orienta o bolsonarismo. Outro exemplo desse Tânatos é o ataque que fazem ao “politicamente correto”. Trata-se na verdade da autorização que reivindicam para desrespeitar qualquer regra de civilidade, dando vazão aos seus preconceitos sem freio.
Na impossibilidade de colocar parte esses brasileiros no divã para elaborarem seus instintos sórdidos, é preciso fortalecer as instâncias mediadoras da modernidade que coajam e constranjam os bolsonaristas a respeitarem os acordos de convivência social. E quem deverá se responsabilizar pela reconstrução das instituições públicas são todos aqueles que se aliaram na frente ampla em torno da candidatura e do governo de Lula.
Recorrendo à relação feita por Zigmunt Bauman entre a psicologia freudiana e a filosofia hobbesiana, todos esses sujeitos que aderiram à chapa petista, representantes de variado espectro político, deverão refundar as autoridades fiscalizatórias e reestabelecer os pactos sociais que visem a repressão àquelas pulsões de morte, tal como o Leviatã. Do Alckmin ao Boulos. Da Kátia Abreu à Sônia Guajajara. Do Helder Barbalho à Anielle Franco. Todos eles deverão refundar os mecanismos institucionais que reprimam o lobo que subsiste em cada bolsonarista.
Como definiram Levitsky & Ziblatt, as democracias sucumbem pelo desrespeito a regras subentendidas e aos princípios políticos tácitos. Então, nos próximos quatro anos de reconstrução dos cacos a que foi reduzido o país, será preciso dar publicidade e materializar em leis a repactuação de fundamentos democráticos para que o bolsonarismo não se repita. Todos que se aliaram à candidatura do Lula, pela circunstância ou por conveniência, devem ir além de seus interesses eleitoreiros e manter a aliança para criar mecanismos de proteção da democracia e do Estado de bem-estar social brasileiros.
De agora em diante, independentemente de para qual lado do espectro político penda a balança das negociações políticas, é imperativo que todos esses sujeitos acordem acerca da necessidade de implodir os pilares de sustentação do bolsonarismo. Todas aquelas expressões que se contraponham ao processo civilizatório devem ser investigadas e punidas conforme a lei prevê.
Bolsonaro na sua abreviada carreira militar e na subsequente carreira política nunca foi devidamente responsabilizado pelos crimes que cometeu. Ao não ter recebido uma resposta adequada aos seus atos, a ele foi sendo autorizado falar e fazer o que falou e fez nas últimas décadas. Da mesma forma, os bolsonaristas também seguem impunes e autorizados.
Sem revanchismo, é preciso reconhecer que não se pode contar com o autocontrole desses antagonistas. Pedir intervenção militar não é apenas um “ato antidemocrático”, como define a imprensa. Trata-se de um crime e, por isso, seus defensores são criminosos. Outros comportamentos devem igualmente ser nomeados. Racismo, proselitismo, corrupção, desmatamento e negacionismo são igualmente crimes. Denominar o problema é o início do processo de cura.
Portanto, o modo como serão tratadas as ações de Bolsonaro e dos bolsonaristas nos próximos anos determinará se colocaremos fim, ou não, à barbarização da sociedade brasileira. E, consequentemente, se a cloroquina se repetirá.
João Lorandi Demarchi é professor, graduado em História, mestre em Geografia e doutorando em Educação pela USP.