Por Matheus Vieira, publicado em Projeto Colabora –
Em menos de 8 meses, Ministério da Saúde enfraquece departamento dedicado à infecção e extingue redes sociais que cuidavam da prevenção. Porém, epidemia cresce no Brasil
O mundo caminha para a quinta década de existência de epidemia do HIV. E nesse percurso, inúmeros foram os avanços dos governos e da sociedade civil em prevenir infecções e mortes. Dados das Nações Unidas divulgados no mês de julho mostram que, em oito anos, houve uma redução de 16% na taxa de pessoas infectadas pelo vírus no mundo. Na contramão, no Brasil, houve um crescimento de 21% nesse mesmo recorte de tempo, de 2010 a 2018. Daí se inicia o ano de 2019. Sob o governo Bolsonaro, o país, que deveria tentar conter esse avanço, passa a ter uma agenda claramente diferente no que diz respeito a HIV/Aids. Uma agenda que inviabiliza ainda mais o assunto.
Departamento de IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis), Aids e Hepatites Virais, que cuidava da síndrome foi enfraquecido e passou a abranger outras doenças, como hanseníase e tuberculose – não relacionadas ao contágio sexual. A medida foi concretizada por um decreto assinado no dia 17 de maio pelo presidente e pelos ministros Paulo Guedes (Economia) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde). Assim, rebaixaram-se os temas do HIV a uma mera coordenação. Não foi só isso. As redes sociais do antigo departamento, que promoviam informação e conteúdo sobre HIV/Aids, criadas e gerenciadas pelo Ministério da Saúde, foram extintas. No Instagram, no Twitter e no Facebook @istaidshv, o MS anunciou que todo o conteúdo será concentrado nos canais oficiais do Ministério. Lembrando que essas redes eram alimentadas com uma média de cinco posts informativos por semana.
Para o psicólogo carioca Salvador Côrrea – doutorando em Saúde Pública pela Fiocruz e coordenador da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids – ABIA (ONG fundada em 1986 por Herbert Daniel e Betinho) – há um evidente desmonte. “A coordenação nacional de combate ao HIV/Aids foi criada no início da década de 1980, com os primeiros casos em São Paulo. Isso foi anterior à existência do SUS no Brasil. A luta contra o HIV sempre teve a sociedade civil no centro do debate, e uma mudança de esfera de gestão não pode acontecer sem uma consulta a essa mesma sociedade civil”, aponta. Vale lembrar que o Brasil já foi considerado pela ONU uma referência no tratamento de pacientes soropositivos. Atualmente, o país tem 866 mil pessoas vivendo com HIV ou com Aids, segundo estimativa o Ministério da Saúde.
Salvador também participa do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual, que reúne ONGs, movimentos sociais e especialistas com o objetivo de reduzir o impacto das patentes industriais no acesso à saúde e medicamentos. Recentemente, o grupo posicionou-se contra a suspensão de 19 contratos de produção de medicamentos – um deles o Sofosbuvir, eficaz no tratamento da hepatite C (também sexualmente transmissível).
“No que diz respeito aos medicamentos para pessoas com HIV, temos desabastecimentos ocasionais que não são de hoje. Mas temos sinalizações alarmantes de que o atual governo está cedendo a uma agenda empresarial da indústria farmacêutica. Nós temos a garantia da distribuição dos medicamentos retrovirais por legislação, mas estamos num claro desmonte”, denuncia o coordenador da ABIA.
Professor de sociologia de rede estadual, Cleverson Fleming, de 29 anos, vive com HIV e faz parte da Rede Nacional de Jovens Vivendo com HIV. Diz estar num estado permanente de angústia desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro. “Não foram poucas as vezes que ele disse que Aids era uma questão de promiscuidade. Sabemos muito claramente que a infecção se dá de inúmeras formas, e mesmo que fosse só por contato sexual, isso não tem nada a ver com promiscuidade. Parece ser uma tentativa de bombardear os movimentos sociais. Estamos a todo momento produzindo conteúdos esclarecedores e cobrando que o Estado produza informações de qualidade sobre o assunto. Afinal, HIV não se trata só com remédio”, pontua o professor.
Salvador, com 35 anos, vive com HIV há oito. Relata a preocupação que sente na própria pele e a que escuta de todas as pessoas com quem convive na Fiocruz e nos espaços de militância. Mas recusa o pessimismo. Ele lembra da origem da camisinha como fator de prevenção do HIV, no início da epidemia. Na época, a recomendação oficial era a abstinência sexual. A comunidade LGBT+ investiu no uso da camisinha – sobretudo os casais sorodiscordantes (aqueles em que somente um dos parceiros é soropositivo). Assim, pressionaram a comunidade médica por soluções mais humanas na prevenção.
“Recebo muita ligação de gente preocupada que não vai ter mais medicamento. Mas temos muitas pessoas comprometidas em não deixar esse retrocesso acontecer. A gente precisa acreditar na nossa capacidade de ressurgir das cinzas. Nós sempre avançamos quando apostamos na solidariedade. Os direitos humanos precisam estar no centro dessa luta. Esses são ensinamentos deixados por Betinho e por Herbert Daniel”.
Uma lei federal do Senador Paulo Paim (PT-RS) foi recentemente sancionada pelo presidente Bolsonaro. Ela dispensa pessoas com HIV aposentadas por invalidez da realização de perícia médica. Desde o início desse ano, muitas dessas pessoas tinham passado pela perícia, avaliadas como aptas mesmo apresentando lesões crônicas, e temiam perder o benefício de vez, já que estavam há muitos anos afastadas do mercado de trabalho.
Até o fechamento dessa matéria, o Ministério da Saúde não se posicionou sobre a mudança estrutural, o encerramento das contas das redes sociais e a denúncia do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual.