Como fazer política na pós pandemia: discursos polêmicos têm destaque no 33º Salão do Livro de Turim

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Quarto e último texto da amiga do Bem Blogado, Lúcia Capanema, professora, pesquisadora no Politécnico de Milão, que cobriu Salão do Livro de Turim para o nosso blog.

Por Lúcia Capanema, professora, pesquisadora no Politécnico de Milão




A política da raiva. O jovem filósofo Franco Palazzi surpreendeu até seu próprio editor com a ousadia do tema e da defesa da externalização da raiva. Seu livro La politica della rabia (A política da raiva) “busca resgatar não só a raiva como legítima e merecedora de expressão, mas os sentimentos em geral em um mundo que prega um discurso ultra-racional, que subtrairia as paixões e conflitos da política”.

Mas Palazzi explica: “um sentimento como a raiva deve ser entendido como diferente da violência.

Trata-se de um volume teórico com atenção aos fenômenos sociais e o potencial radical da raiva, o ‘dínamo da mudança social’, colocando em diálogo vários autores e temas pela primeira vez. Ele demonstra como a raiva pode ser portadora de luz, de imprevisibilidade, uma negação ‘abolicionista’ de algum status quo.

A raiva não é a forma exclusiva do radicalismo, mas é como uma bala que, quando tem um alvo correto, é eficiente. Resta compreender o porquê, o como, por quem e com que objetivo é utilizada, podendo ser bem endereçada. A falácia ‘a violência é sempre errada’ desconsidera os fatos históricos.

A polêmica que Palazzi traz me faz lembrar a Queda da Bastilha. Ou o Che. Marxistamente, reflito que a raiva é muitas vezes uma resposta a uma violência sofrida, é a resposta inata do subjugado. E a bala? Pode ser considerada correta ou eficiente em algum caso?

“O ser humano é o único com capacidade para expressar sentimentos negativos: quando alguém expressa raiva tem como alternativa já planejada um plano positivo, e não a falta de plano que é a violência.

O amor, como criado e introjetado pelo capitalismo, quando torna-se  violento, como no caso daquele que mata sua companheira, é um patologia patriarcal nascida na frustração e na insegurança diante da mulher, e não raiva.

A manifestação da raiva, ao contrário, pode ser breve e certeira como a poesia, forma literária mais econômica e eficiente.

Pode existir dentro do amor e da paixão, até como componente erótico, pois sua expressão, quando é um ato de autocuidado, de defender-se, pode ensejar o diálogo entre pessoas que se gostam”.

A política dos bananas em espetáculo

Pino Corrias é um jornalista bastante conhecido da mídia italiana, tendo sido o criador do programa televisivo “Mani Puliti – il duello” (Mãos Limpas – o duelo), de grande audiência nos anos 1990. Com o volume “Le banane della Repubblica: La Repubblica delle banane raccontata in quarantanove ritratti più uno” (“Os bananas da República: A república das bananas recontada em quarenta e nove retratos mais um”), Corrias retorna à política com ácidas e divertidas críticas aos tipos políticos em voga na atualidade. Como veremos, sua república não detém privilégios nesta matéria.

“A república ainda é de bananas, mas agora existem também os bananas da república. Na política, os bananas precisam ser monitorados diariamente, porque fazem bobagens todos os dias, mesmo em seus estilos farsescos.

Antigamente se diferenciava os personagens da elite política em dicotomias do tipo ‘ladrão x honesto, competente x incompetente’ etc., enquanto hoje em dia o fazemos pelos papeis midiáticos, pelo espetáculo.

Os bananas são sempre cingidos em dois: Uma metade mais operativa e outra mais ridícula, da comédia involuntária.

Segundo o autor, sua busca pelas histórias políticas demonstrou que as histórias pessoais são determinantes na conduta e nas escolhas políticas dos líderes, porque eles não são capazes de escapar de suas próprias histórias”.

O livro, que parte de frases reais ditas por políticos, demonstra um fenômeno mundial, um modo bufão de fazer política que, ao fim e ao cabo, zomba do eleitor, de todos nós. Lá como aqui.

A vitalidade da conspiração

Três escritores da atualidade, Leonardo Bianchi (“Complotti!” – “Conspirações!”), Carlo Greppi (“Collana Fact Checking” – “Coleção Checando os Fatos”) e Valentina Pisanty (“I guardiani della memória” – “Os Guardiães da Memória”) juntos para discutir a teoria da conspiração. Ou melhor, sua vitalidade.

Olhando para os movimentos da direita conspiracionista em Roma (há duas semanas), em Berlim, em agosto e na ‘tomada do capitólio’ em janeiro, Bianchi vê particularidades, mas acredita que “todos fazem parte de uma gramática internacional, com ressurreições violentas dentro de certos grupos ancorados em fakenews e na comunicação digital.

São grupos políticos bem precisos, grandes caldeirões explosivos. Não são muito novos, mas trazem elementos novos que existem em muitos países, como na Austrália, onde são bem grandes.

A lógica negacionista anda junto com a lógica conspiracionista e aponta para um esquema narrativo vazio que exime seus seguidores de qualquer culpa e a coloca em alguém ou alguns outros.

Isto se explica em contextos de crise econômica (quando é preciso apontar as causas das próprias frustrações nos outros), de ‘networking’ sem crítica e de afastamento social, pois juntos aglutinam em enclaves pessoas menos instruídas.”

Mas Pisanty aponta que “há algo de verdade nesse esquema negação-conspiração: Essas pessoas se sentem excluídas de um sistema e encontram alívio nesse tipo de fantasia. Por mais distantes da realidade, precisamos levar a sério estas teorias, pois elas possibilitam a dominação de multidões por poucos.

Estamos vendo um mundo fabricado virtualmente que envolve as pessoas com objetivos políticos de dominação. Podemos lembrar que essas teorias têm base em possibilidades mais verossímeis como, por exemplo, os medos de envenenamento químico em massa e de controle/vigilância social, que são utilizados para a dominação e para fazer crer que o grupo protegeria seus fiéis.

Para a autora, a primeira atitude importante é não ridicularizá-los; depois, entender a complexidade desses movimentos, que reúnem traços anteriores, como racismo, homofobia, medos etc. Só assim será possível compreender suas condicionantes e esse mundo conspiratório imaginado.”

Para Greppi, “estamos lidando com um monstro. Essas teorias, que estão tentando reordenar o mundo, são pluricausais (nada é monocausal).

Lembremos que todos nós em algum momento acreditamos em teorias conspiracionais. Faz parte da empatia e da nossa insegurança em relação ao devir, num mecanismo simples: ‘Se o mundo vai acabar um dia, porque não dessa forma?’

O problema é que se pode partir de alguns esquemas conspiracionistas reais, acontecidos, para uma ideia de que tudo é fruto de conspirações.

Esses profetas do fim do mundo passam a falar de maneira messiânica e somente para seus convertidos. O que pode tirá-los dessa fantasia são os livros, como se fosse verdadeiros ‘manuais de autodefesa’ para confrontar o negacionismo nas escolas, nas redes, nas comunidades. Precisamos buscar as fissuras pontuais e pessoais, pontos de inflexão, em que existe alguma possibilidade de diálogo.”

A incrível ‘fragilidade’ de uma jornalista ‘exilada’ pela política de Erdogan (Turquia)

Em um dos mais esperados eventos, com reserva antecipada e assentos reservados a personalidades, me posto logo ali, na segunda fila, para ouvir Ece Temalkuran. Pego pela metade o comentário da moça da primeira fila: “Ela não gosta de mulheres frágeis” E sua interlocutora: “Ahahah… você?” E a moça: “Pois é, por isso ela disse que não gosta de mim”.

Alguns minutos depois, sobe ao palco aclamada pela plateia, “uma das vozes mais influentes do momento” (segundo o La Reppublica), a moça ‘frágil’ da primeira fila. Ela não se diz ‘exilada’, mas com sérias dificuldades de viver e se expressar em seu país sem ser presa.

Em 2019 seu livro “How to Lose a Country: The 7 Steps from Democracy to Dictatorship” (“Como perder um país: os 7 passos entre a democracia e a ditadura”) causou grande admiração e medo nas pessoas que viram na Turquia mais que o extremismo, um péssimo e possível exemplo para seus próprios países.

Em 2021, ela vem ao Salão falar sobre o livro “Together: 10 Choices for a Better Now” (“Juntos: 10 escolhas para o agora melhor”).

“Não posso dizer que ‘junto’ é a resposta para tudo. A organização das pessoas tem que vir também, mas não podemos dizer a elas para se organizarem e criarem movimentos. Agora estamos vendo o pior e o melhor de nós mesmos – não há muito com que ter esperança, a menos que nos reunamos e nos organizemos, porque o voto sozinho não garante o melhor.

A urna é a arma que nos protege do pior, mas à medida em que o voto ‘encolhe’ perdemos as forças. E o voto encolhe sempre que ele passa a ser a única expressão democrática de um povo.

As democracias não podem ser reduzidas às urnas, ou você acaba com um Trump – legitimando uma democracia reduzida ou problemática. Líderes como ele e Erdogan podem ser implacáveis, o que é até um problema moral, mais que político. Precisamos de uma esquerda organizada, pois temos um centro muito fraco que permite a ascensão de pessoas como Trump.

O conhecimento e a política progressistas têm se dividido muito, apontando mais para diferenças do que pontos comuns; há muitos grupos identitários e precisamos estar mais juntos.

A esperança tornou-se uma palavra vazia porque não tem consequências, o que precisamos é fé nas razões para agir, na humanidade. O fascismo é a total ausência de fé na humanidade. Estamos agora em um mundo onde a ‘verdade’ se tornou uma mercadoria, então você pode ter a sua, disfarçada de ‘identidade’. ‘Eu tenho minha a verdade, tenho meus valores, não acredito na vacina; não sou menos do que você, não me humilhe’, como se se tratasse de uma questão identitária.

O problema da verdade tornou-se político e filosófico – você tem que convencer as pessoas de que o conhecimento e a ciência estão corretos. Você pode levar alguém que acredita que a Terra é plana para qualquer lugar, desde olhar por um telescópio até o espaço sideral para vê-la e ela dirá: ‘mas eu acredito no contrário’.

Como você convence alguém então? Não é possível conseguir! Mas só precisamos fazer isso na medida em que as pessoas que acreditam que o mundo é plano forem a maioria; quando elas se tornarem minúsculas, elas não importam mais.

Já vi o pior na humanidade, mas escolhi ter fé porque essa é a única maneira de construir qualquer coisa – esse tipo de ingenuidade é o que pode nos salvar.

Para aqueles ao redor do mundo que dependem de poucos recursos, a fé é tudo o que têm. Ver o mundo sem humanidade (como vimos durante a pandemia) fez as pessoas gostarem do planeta sem nós – afinal os humanos estão destruindo tudo! Mas também somos capazes de criar beleza, se escolhermos fazer o nosso melhor juntos. Pode não ser confortável, porque teremos que lidar com pessoas estúpidas, mas é a única saída.

Como vamos construir juntos em uma época marcada maciçamente por fakenews e notícias auto-produzidas?

Bem, precisamos lembrar que toda vez que nossos padrões de comunicação mudaram, a política mudou. Aconteceu com a invenção da imprensa e com o rádio e o fascismo.

A diferença é que descobriram um meio que não pode ser regulamentado (pelo menos não com os sistemas de regulação do século 19 que usamos até aqui).

Precisaremos construir redes de comunidades que supervisionem as comunicações de uma forma muito horizontal – como as redes de amizade fazem, com fé e humanidade. Só assim venceremos o fascismo”.

No seu trajeto de saída, ladeada por repórteres e seus editores, consegui olhá-la e dizer: “Obrigada, de uma mulher brasileira”. Ela parou, olhou-me nos olhos, apertou minha mão: “Não se desanime, você tem um país lindo”.

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