Nesta nova edição do “Então, foi Assim?”, do produtor multimídia, pesquisador, radialista, escritor e divulgador da música brasileira Ruy Godinho, vamos contar como foi feita música Cais, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. O produtor multimídia Ruy Godinho já lançou quatro livros a respeito de como foram feitas maravilhosas músicas brasileiras, sempre entrevistando autores, buscando em suas mentes as inspirações.
Que nestes tristes momentos de quarentena, “para quem quer se soltar, que invente o cais / Invente mais que a solidão nos dá / Invente lua nova a clarear / Invente o amor…”
CAIS
Em outubro de 1967, mais precisamente no dia 21, o Brasil ficou dividido entre dois grandes eventos televisivos, com direito a torcida organizada, palavras de ordem, fanfarras, faixas, bandeiras e tudo o que os grandes times de futebol têm direito. Nesse mesmo dia, aconteceram a final do III Festival da Música Popular Brasileira, da Tevê Record, e a segunda eliminatória do II FIC – Festival Internacional da Canção Popular, da Tevê Globo.
O da Record estava reforçado por um time repleto de craques da categoria de Chico Buarque, Elis Regina, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, MPB-4, Jair Rodrigues… No da Tevê Globo não havia nenhum grande nome, mas uma revelação surpreendente. Um rapaz negro, extremamente tímido, olhar triste, defendendo músicas que pareciam compostas por anjos e uma voz que parecia à de Deus: Milton Nascimento[1].
Milton havia classificado três músicas sem ter inscrito nenhuma. À sua revelia, o cantor Agostinho dos Santos, amigo, padrinho e fã ardoroso, as incluiu no Festival. Os telespectadores que optaram pela transmissão da Globo se sensibilizaram com Travessia, Morro velho e Maria, minha fé. A cantora Nana Caymmi se emocionou ao vivo. Foi ao Maracanãzinho assistir ao irmão Dori, que classificara Cantiga, parceria com Nelson Motta e que seria defendida pelo MPB-4.
E foi lá que ela se deparou com Milton. “Foi um golpe mortal. Eu nunca tinha visto alguém cantar daquela forma, uma voz tão bonita e canções tão bonitas”, diz Nana em entrevista ao programa Ensaio (Tevê Cultura, 1993).
Dori ficou amigo de Milton, que ficou amigo de Danilo, que foi padrinho de casamento de Milton, que ficou amigo de Nana, que ficou amiga de Ronaldo Bastos[2], que era apaixonado pelo trabalho e pelo jeito de Nana, que considerava Ronaldo um grande letrista e fiel seguidor.
No ano anterior, Nana havia passado por uma experiência terrível para qualquer um. Se o aplauso é a melhor forma de reconhecimento para o artista, o que seria um oceano de vaias? Foi o que aconteceu ao defender Saveiros, de Dori e Nelson Motta.
Depois que a canção foi proclamada vitoriosa, ela foi repeti-la, e mal conseguia se ouvir, sob as vaias de protesto do Maracanãzinho em peso. Nana ficou marcada durante anos como a cantora da primeira grande vaia em um festival.
Outra vítima das vaias, o cantor, compositor, pintor e cineasta Sérgio Ricardo (1991) afirma que nunca se esquecerá de Nana Caymmi recebendo aquela vaia, as lágrimas lhe caindo pela face enquanto soltava seu lindo canto, tão só. “Ela os desafiou com sua sensibilidade, com sua dignidade, valendo mais do que qualquer discurso. Dizia com seu gesto que não se rendia, e não pararia ainda que o teatro desabasse diante de sua arte incompreendida.”
Ainda ao programa Ensaio, Nana comenta: “E aquela coisa muito marcada que ficou o Festival, naquele mundo que é o Maracanãzinho, vaiadésima e muito desprotegida. Aí ele [Milton Nascimento] fez Cais com toda essa intenção, essa letra [de Ronaldo Bastos] tem toda a história dessa noite”.
Para quem não associou o nome à obra, é providencial que se diga que Ronaldo Bastos é autor também, entre outras, das letras de Cravo e canela (com Milton Nascimento), Um certo alguém (com Lulu Santos), Satélite bar (com Celso Fonseca), Amor de índio (com Beto Guedes), Samba do Soho (com Paulo Jobim), Trem azul (com Lô Borges), Todo azul do mar (com Flavio Venturini) e Zanga zangado (com Edu Lobo), essas três últimas imortalizadas em gravações históricas de Tom Jobim, 14 Bis e Rosa Passos, respectivamente.
É um dos grandes letristas do país, com passagem marcante e essencial pelo Clube da Esquina, no qual introduziu as letras de caráter holístico presentes em Sal da Terra, Sol de primavera e Canção do novo mundo (com Beto Guedes).
Publiquei a história de Cais no Volume I desta Série, em 2008, apenas baseada no depoimento de Nana. Depois fiquei com dor na consciência, já que não dispunha da confirmação dos autores. A partir daí, adotei como rigoroso critério de trabalho, publicar somente histórias colhidas diretamente com os compositores ou a partir de fontes fidedignas.
Por isso não descansei até entrevistar Ronaldo Bastos[3] que ratificou a versão de Nana. Nesse abençoado dia, revelou que a inveja é um dos estimulantes do seu processo criativo. Entenda-se a inveja no tal “bom sentido”.
“Como eu não sei de onde vem a inspiração, eu costumo dizer que vem da inveja. Eu ouço uma música e tenho tanta inveja dela, que fico fazendo música sobre música. Eu acho que tem uma coisa que é assim: a necessidade é que faz você caminhar. Porque eu não sei fazer outra coisa. Aliás, eu faço muitas coisas, eu sou um artista do renascimento, que gosta de muitas coisas, de muitas artes”, afirma o múltiplo Ronaldo Bastos, que além de compositor, é produtor musical, empresário fonográfico, designer gráfico, diretor da União Brasileira de Compositores (UBC). Mas considera-se apenas um compositor popular.
“As pessoas perguntam minha profissão quando preencho a ficha de um hotel e eu falo que sou compositor popular. Não interessa se eu fui amigo do Andy Warhol nos anos [19]80, se eu convivi com não sei quem, se eu estudei grego, se eu falo francês, se eu gosto de pintura. Eu observo muito essa coisa das pessoas que dão referências. São tantas referências que vêm na frente que… Isso pra mim não funciona. Eu não sei de onde vêm as minhas referências, de onde vem o baião”, menciona a música de Gilberto Gil. Ao que respondi: Vem debaixo do barro do chão, pra não perder a oportunidade. Rimos juntos com Memeca Moschkovich, que testemunhava a conversa como minha produtora local.
“Agora, a maneira de fazer isso, para mim, é naturalmente. Aquelas coisas que o Caymmi tinha, aquele livrinho… E eu me lembrei daquele negócio, das coisas básicas de uma pessoa: tomar banho todos os dias, ser decente, ser apaixonado, respeitar o próximo, essas coisas assim, uma série de ensinamentos aparentemente sem uso, e que para as pessoas tão ‘sofisticadas’ são bobagens. Mas é terreiro da música popular. É o ciúme, a paixão… imaginar isso. Então, tem tudo, tem o cinema… E o que eu procuro fazer é me impregnar de vida o tempo inteiro. Eu gosto de gostar das coisas que outros fazem. Eu gosto de estar dentro. E isso é uma maneira de solidão também”, explica seu complexo processo de criação, que resultou em centenas de canções, com dezenas de parceiros, inclusive da que confere título a este capítulo.
“Cais foi feita para a Nana Caymmi. Eu sou absolutamente maluco por ela. Sou tão maluco que eu faço uma proposta de casamento toda semana. Esta sala aqui se chama Sala Nana Caymmi. Peço a Nana em casamento e mando flores. Eu a chamo de Mamãe. Uma vez, o Zé Miguel Wisnik estava escrevendo um negócio sobre cantoras e falou assim: ‘Eu comecei a entender a Nana Caymmi depois que eu soube que o Ronaldo a chamava de Mamãe’”, revela sua afeição desmedida pela caçula do griô baiano.
“Naquele momento, a Nana Caymmi tinha se apresentado no Festival da Canção com a música Saveiros – linda a música – e tinha sido vaiada. E a gente estava muito envolvido. Nesse momento eu estava em casa e recebi as notícias da rua. Sei lá, o pessoal saía à noite, se encontrava no Sachinha’s e contava quem tinha aparecido no Festival, ou o Toninho Horta chegava de madrugada e trazia notícias de que fulano isso ou aquilo, que tinha uma cantora nova…
Essas coisas tinham uma importância imensa para mim. Porque eu via isso de longe. Eu lembro que eu ia ver o Milton cantando na televisão e a febre aumentava. Então, foi assim. Eu tinha esse envolvimento com a Nana, tanto eu quanto o Milton. E ele chegou com essa melodia e falou: ‘Vamos fazer uma canção para a Nana’. E eu fiz essa canção assim”, explica com naturalidade.
“Eu me espanto com o fato de ter feito essa canção com a idade que eu tinha, porque ela é absolutamente uma canção de uma pessoa madura. Depois, fiquei achando também que era um teste que o Milton estava fazendo comigo. Porque a gente tinha recém se conhecido e ele me deu logo uma coisa assim. Eu falo meio brincando, mas acho que, de certa maneira, ele pensou: ‘Eu quero ver como esse cara se sai’. E aí eu tive de inventar isso. Então essa canção fala de invento o cais, porque eu tive de inventar. Eu acho que eu me inventei compositor fazendo Cais, passando na prova”, conclui Ronaldo, com a segurança de quem foi aprovado com mérito.
Quando tive oportunidade de conversar com Milton Nascimento[4], levado pelo amigo Tunai, ele revelou apenas as histórias de cinco composições pré-selecionadas, e Cais estava de fora. Porém, num dos momentos mais expressivos da entrevista, ele diz que a maior fonte de inspiração dele está nas pessoas, o que confirma seu enternecimento diante do ocorrido com Nana e a sensibilização para criar a melodia.
“Sempre as minhas coisas são baseadas nas pessoas. Para mim, a coisa mais importante do mundo são as pessoas. Então quando eu vejo alguma coisa, por exemplo, de cima de uma montanha, uma paisagem muito linda… Se passar uma pessoa na minha frente, a pessoa mexe mais do que tudo. Então, muitas músicas foram inspiradas nas pessoas”, revela Milton.
A estrondosa e injusta vaia recebida por Nana, em 1966, não a impediu de, com voz única e interpretação visceral, construir uma sólida carreira.
Além da gravação original de Nana Caymmi, no LP Nana (RCA, 1977) e de outros registros feitos por ela, Cais foi gravada em diversos álbuns por Milton Nascimento, seguido de dezenas de regravações, inclusive de Elis Regina, Simone, Alaíde Costa, Maria Bethânia, Vânia Bastos e Eugênia Melo e Castro. Além das versões instrumentais de Carlos Malta, André Mehmari, Rildo Hora & Cia das Cordas, e Luiz Eça & Quinteto Villa-Lobos. Sugestivamente também foi título de LP/CD (Som Livre/Dubas Música/Warner Music, 1989/1995) em uma coletânea de composições com letras de Ronaldo Bastos, interpretada luxuosamente por Caetano Veloso.
No dia seguinte à entrevista com Ronaldo Bastos, entrevistei seu parceiro atual mais constante, Celso Fonseca. Este afirmou que Cais teria sido criada para uma boate gay de São Paulo, e perguntou se Ronaldo havia confirmado essa história. Lembrei-me que o cantor e compositor paraense Nilson Chaves já havia me falado sobre esse zum-zum-zum. Não perdi tempo. Por e-mail, cutuquei o Ronaldo, expondo os dois alertas recebidos. Ronaldo não se fez de rogado e respondeu no mesmo dia[5].
“Cais foi feita no fim dos anos [19]70. Eu era um jovem ‘mané’ com 19 anos e não conhecia quase nada além do Rio de Janeiro. A canção, todo mundo sabe, foi feita para Nana Caymmi. A cor do mar de Cais remete a Arraial do Cabo (RJ), onde havia um cais e o verde-azul mais lindo que já existiu. Anos depois, durante o lançamento do CD Cais, um jovem jornalista foi me entrevistar para a revista De Domingo, e a primeira pergunta foi: ‘O que é o Cais para você’? Eu poderia dizer: ‘Cais é o lugar que a minha alma se projeta e outras banalidades do gênero’. Eu respondi: ‘Cais é um clube noturno em São Paulo, onde eu vou com o Cazuza dançar antes de rumar para o Val Improviso’.
A minha resposta não foi para incluir esse tal ‘Cais paulistano’ na criação da canção. A intenção era colocar a entrevista no rumo certo para alguém que não conhecia o meu trabalho e esperava entrevistar um bicho-grilo de Minas. Deu certo. Portanto, não existe nenhuma ligação, nem mesmo temporal, entre um cais e outro. É possível que Celso Fonseca, a quem eu ainda não conhecia nessa época, e o Nilson Chaves tenham escutado essa história e misturado os canais”, conclui para não restar a menor dúvida.
Cais
(Milton Nascimento/Ronaldo Bastos)
Para quem quer se soltar
Invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor
E sei a dor
De encontrar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir
Eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
[1] Milton Nascimento 26/10/1942 Rio de Janeiro/RJ.
[2] Ronaldo Bastos Ribeiro 21/1/1948 Niterói/RJ.
[3] Entrevista concedida ao autor em 27/4/2015, no Rio de Janeiro/RJ.
[4] Entrevista concedida ao autor em 22/1/2014, no Rio de Janeiro/RJ.
[5] Em 13/5/2015.
Aqui, emocionantes interpretações de Nana Caymmi e Milton Nascimento em “Cais”.
Os livros “Então, foi Assim?” estão disponíveis no site: www.entaofoiassim.com.br
Foto: Luiz Clementino