Parodiando o poeta Paulo Mendes Campos, rodas de samba nascem, vivem, parecem eternas a um determinado momento, e morrem. Morrem numa segunda-feira.

De costas para o público como bom maestro, Paulo Roberto Pereira de Araújo afina o violão, sentado em torno da mesa redonda, quando percebe atrás de si o início do debate entre duas senhoras. Gira calmamente o pescoço, deita seus doces olhos verdes numa das frequentadoras e vaticina: “A bolsa tem bunda? Quem guarda cadeira é bunda, se a senhora chegou pode sentar”. Não se trata, evidentemente, de um maestro comum. Aos 60 anos, 43 de samba, Paulão Sete Cordas tem acompanhado os principais malandros do partido alto carioca, de mestre Marçal da Portela ao mítico Aniceto do Império, de Nelson Cavaquinho da Mangueira a Zeca Pagodinho de Irajá, de quem há três décadas é harmonizador em gravações e turnês.




Músico graças ao avô João Gonçalves de Araújo, regente de banda do Exército, Paulo quase fez sua estreia numa orquestra empunhando um bombardino, ou eufônio, instrumento de sopro que não daria bom apelido. Por sorte, ficou com o violão – instrumento dos mais antigos no Brasil, conhecido por aqui desde o desembarque dos padres jesuítas no século 16, à época ainda com exageradas dez cordas. A viola dos padres somada a flautas indígenas, provavelmente, marcou o ritmo da primeira roda musical miscigenada de Pindorama. Pois, com exceção do violão de dez cordas, Paulão já dedilhou de tudo nos mais diversos fundos de quintais, nas praças do bairro do Jacaré, onde fez sua estreia levado por Monarco, nos bares do Estácio, em palcos da Europa. Num castelo com fama de mal-assombrado, no entanto, era a primeira vez. E, pelo visto na noite de 22 de outubro, uma segunda-feira, a última.

O Samba do Castelinho, no bairro do Flamengo, veio na esteira das rodas musicais de segunda-feira no Rio de Janeiro. Em maio de 2005, Moacyr Luz criou no clube Renascença o Samba do Trabalhador, que começava às quatro da tarde e reunia até as 22h músicos de folga após a ralação do fim de semana. A coisa pegou, e deu origem a outras reuniões musicais similares, todas no formato do “pagode de mesa”, popular no Rio desde a década de 1970, com o Cacique de Ramos. A partir de 2009, surgiram assim a roda da Pedra do Sal e, mais recentemente, o Samba da Gávea.

Convidado pela direção do Castelinho, ou Centro Cultural Oduvaldo Vianna Filho para os antenados, Paulão reuniu Marquinhos China, um sobrevivente do Cacique e a cantora Ana Costa, e fechou o time com os músicos Bianca Calcagni, Anderson Balbueno, Jorge André e Leonardo Pereira. Sob o olhar atento de querubins, sílfides e gárgulas de língua de fora emparedados no palacete centenário, erguido em 1918 após projeto do arquiteto italiano Gino Copede, o “Gaudí de Roma”, o samba acústico começou a atrair um público formado em sua maioria por senhores e senhorinhas.

SOU EU

SOU EU QUE NÃO QUERO MAIS CHORAR

SOU EU QUE NÃO QUERO MAIS PEDIR

PRA ELA NÃO ME ABANDONAR

Por módicos 30 reais (15 a meia-entrada), aposentados, desempregados, fãs de MPB em geral e alguns estudantes se aboletavam para participar de um dos mais democráticos programas cariocas. “Há formas e formas de ser aceito no universo da roda”, explica o pesquisador Roberto M. Moura, já na introdução de seu “No princípio, era a roda”. “A mais natural delas é cantando e tocando – mas essas formas não são exclusivas. Há quem fique apenas no coro e nas palmas e mesmo assim seja considerado ‘do ramo’. Entre os simpatizantes, há quem cuide da cozinha e dos tira-gostos”, caso de tias consagradas como Vicentina, Doca e Surica, todas da Portela.

No Castelinho, cuja estreia foi no ano passado, numa segunda-feira em 27 de novembro, cozinha não havia e os tira-gostos eram parcos, normalmente amendoim e quiches a serem esquentados num forno improvisado. O laço de comunhão dos frequentadores com a roda de artistas, porém, foi logo criado com a oferta de garrafas e mais garrafas de cachaça, trazidas e sempre postas na mesa redonda, para qualquer um que quisesse um copinho. Uns dias enchiam. Em outros, quase fim do mês, apareciam dois ouvintes.

Antes de entoar clássicos de Cartola, Wilson Moreira e Nei Lopes, o casarão de quatro andares onde uma moradora teria se atirado da torre principal era conhecido pelos ruídos e berros fantasmagóricos, da suicida que voltara para assombrá-lo, especulava-se. “A casa tem muita madeira e seria normal estalar, fazer barulho, mas nem isso tem”, comenta Claudia Chaves, atual diretora do Castelinho. “Em quase dois anos como diretora do lugar, nunca vi um documento que comprovasse a morte misteriosa”. Para Claudia, o fim da roda tem uma razão simples: “Descobri que o carioca reluta em sair de casa no inverno. Com o clima da eleição e as crises, isso piorou”.Nesse dia 22 de outubro, por mais que se tente, nenhum urro ou rangido é ouvido. O que se escuta é o tilintar das cinco garrafas de aguardente sobre a mesa e a melodia bem divisada por Ana Costa:

O SAMBA TEM FEITIÇO

O SAMBA TEM MAGIA

NÃO HÁ QUEM POSSA RESISTIR (…)

MAS ENQUANTO HOUVER SAMBA

ALEGRIA CONTINUA, ALEGRIA CONTINUA

ALEGRIA CONTINUA

Parodiando o poeta Paulo Mendes Campos, rodas de samba nascem, vivem, parecem eternas a um determinado momento, e morrem. Morrem numa segunda-feira. Estima-se que haja atualmente no Rio de Janeiro cerca de 150 rodas similares, de acordo com o geógrafo e estudioso no assunto João Grand Júnior. Um de seus estudos, feito junto ao Instituto Pereira Passos, apontou que cada pagode movimenta cerca de 50 mil reais por mês. Mas as novidades não têm sido boas para os bambas.

A roda do Candongueiro, em Pendotiba, uma das mais folclóricas do estado, extinguiu-se sem choro nem vela em março último, dando fim a mais de 30 anos de histórias. “Vou demolir tudo e botar à venda”, declarou ao jornal “Extra” o fundador da casa, Ilton Mendes. “O público acabou. As pessoas estavam vindo só para paquerar. Não conhecem nada de samba”.

Fim similar teve o bar Semente, do bairro boêmio da Lapa, que desde 1998 mantinha às segundas uma roda instrumental comandada por Zé Paulo Becker cujo público roçava cotovelos com Chico Buarque, Ney Matogrosso, Dave Matthews, Sting, João Bosco, Norah Jones e companhia ilimitada. O samba comia aos domingos, mas o Semente fechou as portas em outubro de 2017, asfixiado pela recessão econômica, pela falta de segurança e o consequente esvaziamento do bairro.

Enredo pior teve o pagode Firme e Forte, no último dia 20 de agosto. O Itajubar na Tijuca, sede etílica da roda, foi arrombado e seus equipamentos surrupiados. Para dar aquela força, sambistas de diversos bairros foram tocar lá na semana seguinte, numa sexta-feira memorável. Porém, após o samba, parte dos músicos foi abordada na esquina da rua do Matoso, por um carro com dois homens, um fuzil e um revólver calibre 38. Levaram até o cavaquinho.

No Castelinho, assombrado ou não, reinava a paz. Ao menos até as 21h28, quando o samba terminou sob urros, aplausos e abraços de 80 jovens e adultos, entre eles o deputado estadual reeleito Eliomar Coelho. Um senhor da segunda fileira, que cochilara com o copo de cachacinha na mão, despertou e foi tomar um guaraná, direto de um isopor improvisado. Muitos cumprimentavam o jovem Fernando Procópio, futuro astro da terceira geração de sambistas da família, que acabara de cantar:

EU VOS DECLARO MARIDO E MARIDO

EU VOS DECLARO MULHER E MULHER

HOJE A UNIÃO TEM UM NOVO SENTIDO

TUDO É PERMITIDO, CASA QUEM QUISER…

Após levar a última canção em pé, ao estilo das primeiras rodas de samba do século passado, Paulão Sete Cordas olha em volta e sorri, sem sinal de tristeza: “Oba, maravilha!”

No chope de saideira, num bar perto, justificaria a serenidade de meia hora antes: “Eu já acompanhei Xangô da Mangueira e Aniceto, e aquelas rodas também acabaram, não ficou registro nenhum. Nenhuma roda se repete. É da vida”, resigna-se Paulão, para então concluir: “Para ser boa, a roda de samba tem de render ao menos o do táxi. Se não estiver pagando nem a condução, o melhor que o malandro faz é ir para casa, e passar a segunda-feira com a família.”

Marcelo Dunlop escreve de acordo com a ortografia brasileira