Por Edson Athayde, jornalista e publicitário português
“Existirmos: a que será que se destina?” é o primeiro verso de “Cajuína”, uma canção de Caetano Veloso. Bela, solar e dançante, “Cajuína” refere-se a uma bebida homónima à base de sumo de caju, típica de Teresina, capital do Piauí.
Caetano inspirou-se no néctar cristalino e doce para escrever um forró em homenagem a Torquato Neto, poeta e parceiro que suicidou-se muito novo, em 1972, não só mas também por não aguentar os anos de chumbo da ditadura militar brasileira.
Torquato escreveu, Caetano musicou e Gal Cantou: “Mamãe, mamãe não chore / Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz, Mamãe, seja feliz / Mamãe, mamãe não chore / Não chore nunca mais, não adianta eu tenho um beijo preso na garganta / Eu tenho um jeito de quem não se espanta / Eu tenho corações fora peito / Mamãe, não chore, não tem jeito.”
Não teve jeito. Para Torquato. Nem para Flávio Migliaccio, ator veterano de tantas novelas que também passaram aqui em Portugal e que há alguns dias se enforcou. Flávio deixou uma carta a dizer: “Tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este e com esse tipo de gente que acabei encontrando.”
Alguém escreveu que Migliaccio morreu de Brasil. A frase faz sentido, mas é imprecisa. Morrer de Brasil refere uma doença mais geral, endémica, que atravessa séculos. Sempre se morreu de Brasil, às vezes de escravidão, seca no sertão, outras pela inflação ou por corrupção e tantos outros “ãos”, que fazem boas rimas pobres, mas nunca uma solução.
Para se morrer de Brasil não é necessário estar no Brasil. O mundo morre de Brasil a cada árvore queimada da Amazónia, a cada criança favelada que não sobrevive pela ação do tráfico, pela falta de esgotos, pela subnutrição. Crescida, tal criança poderia ser um Pelé, um Vinicius de Morais, uma Elis Regina, um Ayrton Senna e assim deixar o mundo mais vivo. Mas não.
Portugal também morre de Brasil pois a tragédia moral e social de um país, qualquer país, é uma tragédia que contagia, que ensombra toda uma ideia de civilização. Mais ainda quando acontece a um povo com quem partilhamos o sangue e a língua.
Mas, repito, a doença agora é outra. Ou outras. Há a covid e há o bolsonarismo. São vírus de cepas parecidas, levam à falência de órgãos vitais, seja um pulmão ou o coração ou cérebro ou o congresso nacional.
Pode não parecer, mas este texto é sobre a vida. Falar de mortos é lembrar aos vivos (inclusive eu) que sobramos nós para fazer alguma coisa.
“Existirmos: a que será que se destina?”
Humildemente, respondo: para vencer as trevas é preciso luz, é preciso arte, é preciso diálogo, é preciso poesia, é preciso redescobrir a empatia.
O antídoto para uma coisa má costuma ser o seu antónimo: uma coisa boa. Esta aí: pessoas boas (e o Brasil tem destas quase duas centenas de milhão) precisam compreender isto e atuar enquanto há tempo. Só assim é que poderemos (todos) não morrer mais de Bolsonaro.
Edson Athayde
Jornal de negócios, 20 de maio de 2020