Confira dados sobre os prejuízos econômicos e histórias de pessoas que lutam para sobreviver às restrições
Por Fania Rodrigues, compartilhado de Brasil de Fato
A pedra fundamental do embargo econômico contra a Venezuela foi criada em 2014, com a lei 113-278, aprovada pelo Congresso dos Estados Unidos (EUA), que proíbe todas as empresas estadunidenses, ou estrangeiras que tenham negócios no país, de realizar transações e negociações com o Estado venezuelano.
Daquela data até 2019, o governo dos EUA editou sete decretos executivos e uma lei para impor bloqueios e sanções contra o país de Simón Bolívar e Hugo Chávez. Como numa guerra, cada nova medida criada buscava fechar meticulosamente as portas por onde a Venezuela pudesse tentar reverter, ou amenizar, os efeitos dos embargos anteriores.
A principal impactada com as restrições impostas é a população venezuelana, sobretudo as camadas mais pobres, por conta da disparada da inflação e da falta de recursos para os serviços públicos e programas sociais do governo.
Em permanente ataque econômico, como forma de tentar desestabilizar o governo de Nicolás Maduro e provocar a derrocada do chavismo, em 2017, o Departamento do Tesouro dos EUA proibiu a negociação dos títulos da dívida da Venezuela. O risco-país disparou imediatamente, equiparando-se ao de países em guerra. Junto com ele, o valor dos juros da dívida do governo venezuelano.
O resultado da medida abalou diretamente a principal fonte de receitas em dólares do país — o petróleo –, fundamental para uma economia que importa 85% do que consome.
Os juros exorbitantes impossibilitaram qualquer empréstimo ou capitalização no mercado global para a PDVSA, a empresa nacional de petróleo. Não bastasse, em janeiro deste ano, os EUA impuseram um embargo direcionado à PDVSA — responsável por 95% das receitas da Venezuela em moeda estadunidense.
Também como parte da ofensiva, o Petro — moeda virtual com lastro em petróleo criada pela Venezuela para aumentar as receitas do Estado — foi alvo de sanções, assim como as transações do comércio privado venezuelano.
No entanto, a medida que gerou maior impacto para o país, segundo o vice-ministro de Comunicação, do ministério de Relações Exteriores, William Castillo, foi o bloqueio do Banco Central Venezuelano dentro do sistema Swift, o mecanismo de envio e recebimento de pagamentos mais utilizado no mundo, que envolve mais de 10 mil instituições bancárias.
Em paralelo, as principais contas vinculadas ao Estado venezuelano em bancos estrangeiros — que poderiam ser um caminho alternativo para importação de produtos — também foram bloqueadas, inviabilizando o acesso a cerca de US$ 5 bilhões.
Essas sanções conjugadas impossibilitaram a compra pelo governo de diversos itens básicos, como remédios, por exemplo.
A economista Pascualina Curcio, doutora em Ciências Políticas pela Universidade Simón Bolívar, explica que 90% das vacinas e 99% do modelo rotativo de compra de medicamentos eram feitos via sistema Swift, pelo Banco Central da Venezuela, em conjunto com a Organização Panamericana de Saúde.
O que a Venezuela deixa de fazer
Curcio fez um levantamento do que seria possível fazer com esses recursos. “São suficientes para abastecer toda demanda de medicamentos da Venezuela pelo período de um ano. Isso também é o que custa financiar o sistema de educação, por dois anos”, estima.
Ainda segundo a economista, o total de US$ 24 bilhões bloqueados em todo o mundo seria suficiente para abastecer o país de todas as importações, por um ano completo, já que para isso são necessários aproximadamente US$ 20 bilhões.
É por isso que, entre tantos outros produtos, não chegam mais à Venezuela os medicamentos necessários para os tratamentos de dona Rosalva e do pequeno Samuel David, cujas histórias o Brasil de Fato conta a seguir.
O bloqueio e a luta contra o câncer
O ambiente pouco iluminado e o silêncio quase fúnebre, rompido apenas pelo miado de um gato e o chiado da porta que abre, são indícios de que na casa repousa uma pessoa doente. A vida agitada da camareira de hotel Rosalva Malave, de 48 anos, que tinha dois empregos formais, foi trocada pela rotina de hospitais, exames médicos e longos dias de descanso em casa. Ela foi diagnosticada com câncer de mama em janeiro deste ano e espera pelo tratamento.
Moradora do humilde bairro de Antímano, na zona oeste de Caracas, dona Rosalva não sabe quem é John Bolton, conselheiro de Segurança da Casa Branca, e nem Mike Pompeo, secretário de Estado dos Estados Unidos. Os dois funcionários do governo dos Estados Unidos dirigem as políticas de guerra econômica contra a Venezuela.
O que ela sabe é que os remédios que precisa para se tratar do câncer não estão chegando ao seu país de forma regular. “É pelo bloqueio”, diz a camareira, sem entender bem o significado que isso tem na geopolítica mundial.
Dona Rosalva Malave também não tem nada a ver com a disputa entre o presidente Nicolás Maduro e o presidente da Assembleia Nacional Juan Guaidó. Mas sofre no dia-a-dia as consequências do bloqueio econômico solicitado pelo congresso venezuelano, de maioria opositora e liderado por Guaidó, aos Estados Unidos e a países da Europa.
Seis meses depois do diagnóstico, dona Rosalva ainda não recebeu nenhuma sessão de quimioterapia. Com o atraso, seu quadro de saúde pirou no último mês. Quanto mais o tempo passa, as chances de cura vão diminuindo. “Fomos em vários hospitais e a informação que recebemos é os medicamentos não estavam chegando na Venezuela. Mas, essa semana chegou”, conta a paciente, que finalmente vai poder fazer o tratamento.
Rosalva Malave ficou sem tratamento para o câncer por seis meses | Foto: Fania Rodrigues
No entanto, ela se deparou com outra dificuldade, também causada pelo bloqueio. “Preciso fazer um exame de duplo contraste (tomografia computadorizada), para isso preciso injetar um líquido, um remédio no corpo. Esse produto só é encontrado no setor privado, pois o governo não consegue comprar devido ao bloqueio”, explica dona Rosalva. Em uma clínica privada, o exame custa aproximadamente US$ 100 dólares (cerca de R$ 400) e a camareira não tinha como pagar.
Quem mantém o sustento da casa é o filho mais velho de 24 anos, pois o mais novo, de 20 anos, também está sem trabalho. A comunidade, sensibilizada com sua situação, se organizou para ajudar. Os vizinhos realizaram uma quermesse para arrecadar dinheiro para o exame e os remédios que Rosalva vai precisar tomar depois do tratamento quimioterápico.
“Antes do bloqueio era tudo mais fácil. Esse ano a situação piorou muito. Agora, a espera e a dificuldade é muito maior”, afirma Yelitza Bernal, líder comunitária e vizinha de Rosalva.
Entre março e junho desse ano, o governo venezuelano assinou um acordo de Assistência Técnica Humanitária com China, Rússia e a Cruz Vermelha. Com isso foi possível o envio de 694 toneladas de medicamentos, o que contribuiu para elevar o nível de abastecimento, sobretudo no atendimento médico primário.
A oferta de anti-inflamatórios, antibióticos básicos e remédios para doenças mais comuns melhorou nos últimos meses. No entanto, o desafio na saúde continua sendo a degradação do sistema médico no atendimento de casos mais complexos.
Atualmente a Venezuela possui cerca de 16 mil pacientes de câncer, 60 mil com HIV, outras 16 mil com necessidade hemodiálise e 4 mil com diabetes. A estimativa é mais de 300 mil pessoas estejam com a vida em risco por falta de acesso a medicamentos e tratamentos. Os dados são do instituto Sures de Estudos e Defesa dos Direitos Humanos e são baseados em números oficiais.
Os remédios não chegam, segundo o ministério de Relações Exteriores da Venezuela, porque muitas contas bancárias no exterior, com recursos do Estado venezuelano utilizados para as compras, estão bloqueadas.
O tamanho do prejuízo
A economista, professora e pesquisadora Pascualina Curcio, fez um mapeamento das principais contas do Estado venezuelano bloqueadas em bancos estrangeiros. Juntos esses recursos somam mais de U$ 5 bilhões.
Do montante bloqueado em Portugal, cerca de U$ 4 milhões seriam destinados a 24 pacientes que foram enviados pelo governo venezuelano à Itália, para a realização de cirurgias delicadas e tratamentos que não são feitos na Venezuela. Três deles faleceram a espera do tratamento.
Na Argentina, encontram-se outros quatro pacientes para tratarem no Hospital Italiano de Buenos Aires, financiados pela Fundação Simón Bolívar, com verba da Citgo, subsidiária da PDVSA nos EUA. Pacientes e seus familiares esperam por esse dinheiro embargado em bancos norte-americanos e não sabem se vai chegar a tempo de salvar vidas.
Para o vice-ministro de Relações Exteriores William Castillo, o bloqueio viola todas as normas do direito internacional. Por isso o governo venezuelano está solicitando aos organismos internacionais que inclua as medidas de bloqueio econômico, a guerra econômica e a guerra não convencional na lista dos crimes de guerra e crimes de lesa humanidade.
“As sanções econômicas são substitutas de intervenção militar. Provocam quase a mesma devastação. No Iraque morreram mais pessoas pelo bloqueio econômico (entre 1990 e 2003), que no conflito na Guerra do Golfo (1991)”, diz Castillo. Segundo Castillo, a estratégia do governo Trump é asfixiar a economia venezuelana, para levar o país a um caos e assim impor seu modelo político.
Adolescente vítima do bloqueio
Em solo venezuelano, o estudante Samuel David Tovar, de 14 anos, luta para manter-se vivo depois de três anos sem tratamento. Ele é portador da síndrome de Gaucher, uma doença rara, genética, que consiste na deficiência de produção de enzimas. A síndrome provoca o acúmulo de restos de células envelhecidas, o aumento dos órgãos como fígado, baço e rins, e a diminuição do número de plaquetas e doenças ósseas.
Samuel David foi diagnosticado aos 6 anos, no Hospital Perez Carreño, pela doutora Leonol Cardenas, a única especialista em doenças raras do país. O tratamento dedicado a David até três anos atrás, está entre os dez mais custosos do mundo.
“Depois de muitos exames, foi detectado, através de uma amostra do ossinho da cadeira, o dignóstico de Gaucher estava presente em 40% das células, um índice muito algo para uma criança de 6 anos”, relembra a mãe de David, Maria Eugenia Tovar Cambero, de 32 anos.
O Estado venezuelano financiava os medicamentos de 126 casos como esse. Todos tiveram os tratamentos interrompidos. Tratam-se de remédios cuja fabricação é controlada pelos governos nacionais de cada país e que não estão disponíveis no mercado privado.
A mãe de David conta que conseguiu trazer o tratamento para o país em uma oportunidade que teve falar com ex-presidente Hugo Chávez durante um evento público, oito anos atrás.
Nesse momento, Maria Eugênia, que é técnica em administração de empresas, está na República Dominicana, trabalhando para enviar dinheiro a David e o filho mais novo, Diego André Tovar. As crianças são cuidadas pela avó, Carmen Luisa Tovar, assistente de enfermagem.
A mãe quer levar o filho para a República Dominicana, pois conseguiu lá o tratamento para o filho, mas a crise migratória venezuelana faz com que o processo de emissão de passaporte para o adolescente seja lenta e até o momento não conseguiu solucionar.
Sem o tratamento, devido ao bloqueio econômico à Venezuela, o estudante se debilitou. Com os ossos cada vez mais frágeis quebrou as duas pernas brincando. “Nesse momento a situação é muito preocupante porque ele tem uma fratura na perna, há quase 10 meses. Brincando fraturou as duas pernas, pois está há três anos sem tratamento. Uma das fraturas se curou, mas a outra voltou a fraturar, porque ele caiu outra vez devido a debilidade”, conta a mãe.
Samuel David, de 14 anos, está sem tratamento há três anos (Foto: Arquivo da família)
Guerra econômica farmacêutica
Para voltar a ter uma vida normal, David e os outros 126 portadores da síndrome de Gaucher precisam tomar dois remédios para estabilizar a produção de enzimas, um deles é o Vpriv, fabricado pelo laboratório Shire, uma empresa biofarmacêutica global, com sede administrativa na Irlanda, mas com base operacional nos Estados Unidos.
O outro medicamento é o Cerezyme, produzido pela empresa biotecnologia Genzyme, dos Estados Unidos, localizada em Cambridge, Massachusetts. Uma dose, que deve ser tomada duas vezes ao mês, custa cerca de US$ 800. No Brasil, o Cerezyme é fabricado por laboratórios locais e o valor varia entre R$ 5 mil e R$ 8 mil reais.
Os medicamentos desses laboratórios deixaram de chegar à Venezuela depois das primeiras sanções, ainda em 2015, quando o então presidente Barack Obama assinou um decreto declarando a Venezuela uma ameaça inusual e extraordinária.
O ex-ministro de Saúde da Venezuela Eduardo Saman explica que existe uma dificuldade real por parte do governo venezuelano em comprar medicamentos devido às sanções.
“Existe uma dificuldade do governo venezuelano em fazer pagamentos no exterior. Nenhum dos bancos estrangeiros aceitam mais fazer pagamentos com recursos do governo venezuelano. Algumas importações foram terceirizadas para empresas privadas, que possuem mais facilidade nessas transações, mas quando são venezuelanas também encontram dificuldades”, afirma Saman.
O único laboratório de fabricação de medicamentos no país foi fechado recentemente e pertencia à Bayer, a gigante farmacêutica e química, de origem alemã.
“Ultimamente ela fabricava basicamente acetaminofeno [paracetamol] e ciprofloxacina [antibiótico]. Esse último inclusive com registro de patente irregular contestado na Justiça. Agora nem isso. Vai se dedicar a importar medicamentos. Os trabalhadores ficaram insatisfeitos com a negociação, que foi feita através acordos ilegais, sem comunicar oficialmente o fechamento da fábrica ao Ministério do Trabalho”, explicou o ex-ministro.
Saman diz ainda que os grandes laboratórios farmacêuticos há anos pressionam ao governo venezuelano para inibir a quebra de patentes no país, impedindo pequenos laboratórios nacionais de produzir medicamentos: “Ameaçam não vender medicamentos ao governo, criando assim uma forte dependência das importações”.
No caso das doenças raras a situação é ainda mais dramática, pois existem poucos laboratórios especializados nessa área. “Como são poucos os pacientes de doenças raras, não existem muitos laboratórios. Por isso os remédios têm custo elevado. Os pacientes, nesses casos, estão todos mapeados. Na Venezuela são entre 15 mil e 24 mil pacientes portadores de síndromes especiais. Mas o país não tem como produzir e nem comprar, já que os laboratórios estão localizados nos EUA, origem do bloqueio econômico”, lamenta.