No centenário da Semana de 22, o filósofo Luiz Armando Bagolin fala sobre a maior exposição já realizada sobre o modernismo brasileiro, da qual ele é curador. Acervo foi criado a partir do espólio de Mário de Andrade.
Por Edison Veiga, compartilhado de DW
Em cartaz até 29 de maio de 2022, a mostra Era uma vez o moderno é a maior já feita sobre o modernismo brasileiro, justamente no ano em que o centenário da Semana de Arte Moderna faz os holofotes incidirem sobre o papel que o movimento teve para a cultura nacional.
Concebida a partir do rico material mantido pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), a montagem da exposição exigiu mais de um ano de pesquisa.
O que o público pode conferir no Centro Cultural Fiesp são 384 itens, dentre os mais valiosos garimpados pelos pesquisadores da USP a partir do espólio do autor Mário de Andrade (1893-1945). Entre eles, obras das pintoras Anita Malfatti (1889-1964) e Tarsila do Amaral (1886-1973).
Para um dos curadores da moatra, o filósofo Luiz Armando Bagolin, apesar da importância histórica do modernismo o interesse é baixo. “O interesse privado do capital está em outro lugar”, afirma ele. “Está na arte contemporânea, a arte brasileira que vem sendo exposta em bienais e feiras internacionais.”
Em entrevista à DW Brasil, o também professor do IEB-USP fala sobre as lições que se pode tirar do movimento modernista, e lembra que é importante olhar para o contexto atual: “Passaram-se 100 anos. A sociedade melhorou? O modernismo não continua. Não há um legado que passe da época dele para a nossa época.”
Em sua opinião, como a Semana de 22 deve ser definida hoje, 100 anos depois? Que lições podemos tirar dela para o Brasil contemporâneo?
Luiz Armando Bagolin: Não vejo a história do ponto de vista de uma linearidade positivista. A linearidade histórica é uma ficção, uma representação do tempo. Podemos olhar para a experiência deles, tentar entender como eles agiram no contexto e na época deles e depois refletir sobre a nossa própria época.
Quando o Mário de Andrade fez um balanço do que foi a arte moderna e toda a experiência vivida por ele e pelo grupo [em conferência sobre o tema proferida em 1942], seu balanço foi negativo. Segundo Mário, entre outras coisas, como ser moderno numa sociedade que não progrediu, que continua atrasada? Atrasada em muitos sentidos. Não tem educação para todo mundo, não tem escola para todo mundo, não tem saneamento básico para todo mundo, não tem alimento.
O que é ser moderno? Como podemos ser modernos, hoje, por exemplo, se pensarmos em toda a brutalidade, os recuos, os retrocessos que estamos vivendo, com essa quantidade enorme de famílias inteiras morando na rua? Ser moderno é pintar um quadro? É fazer um poema? É fazer um edifício bacana, com uma mobília bacana, com design? Como ser moderno e isolado da sociedade onde se vive?
Essa reflexão é o legado?
O principal legado, se há algum, é olharmos para a experiência deles no tempo deles e, depois, olharmos para o nosso contexto. Estamos comemorando uma efeméride, e aí? Passaram-se 100 anos. A sociedade melhorou?
A gente encerra a exposição com esse desencanto, esse tom melancólico do Mário. Quando o modernismo foi assimilado como cultura oficial, quando os escritores passaram a trabalhar sobre os auspícios do Estado Novo [de Getúlio Vargas, 1937-1946], o modernismo como experimentação de linguagens, princípio inclusive contestador dos padrões e das convenções, esse caráter foi destruído.
Essa era a tese do Mário de Andrade e nós a acolhemos: modernismo não continua. Não há um legado que passe da época dele para a nossa época.
A exposição traz materiais inéditos encontrados depois de tanta pesquisa nos acervos do IEB?
Encontramos alguns materiais inéditos e outros apenas do conhecimento de pesquisadores. Apresentamos, por exemplo, os cadernos de desenho da Anita Malfatti, que não são inéditos mas trouxemos numa sequência que permite, entre outras coisas, ver como o desenho da Anita já antecipa a solução formal, plástica, da figura do Abaporu [obra mais conhecida da pintora Tarsila do Amaral], que foi pintado cinco anos depois.
Outro aspecto interessante: o Mário [de Andrade] sempre fez anotações e revisões em todas as edições do Macunaíma [livro publicado pela primeira vez em 1928]. Achamos que seria importante incluir, no fim da exposição, o exemplar da última edição feita com o Mário vivo, com as anotações dele. Ao folhear esse exemplar, descobrimos um recorte de um jornal de Manaus de 1944 com a notícia de que os restos mortais do [etnologista e explorador alemão Theodor] Koch-Grünberg, a ossada dele, estavam dentro de uma maleta numa delegacia de Manaus.
O Grünberg foi o autor da viagem ao Orinoco, na fronteira amazônica entre o Brasil e a Venezuela, em 1913, de cujo livro o Mário retirou a palavra Macunaíma e o conceito de “herói sem caráter”. Ele morreu em 1924, na fronteira de Roraima. E políticos do Amazonas pediram para que o governo federal trasladasse seus restos mortais para que ele fosse sepultado em Manaus. Se em 1944 ele ainda não tinha sido enterrado… A gente achou isso muito surreal.
A realidade brasileira é muitas vezes mais surreal do que o surrealismo. E colocamos ali ao lado do exemplar, na última vitrine [da exposição] como uma hipótese nossa, no sentido de lembrar que assim como o Koch-Grünberg, o modernismo também só faltava ser sepultado, porque ele já estava morto há muito tempo…
Por que antes nunca houve uma exposição tão grande assim sobre o modernismo?
Não sei responder. O IEB tem o maior acervo de arte e documentos relativos ao modernismo brasileiro. Mas não temos tudo, muita coisa está em coleções particulares, privadas. A apologia, o enaltecimento do modernismo e em particular da Semana de Arte Moderna de 22, se deu no cinquentenário, em 1972. Ali teria havido todo o interesse e as possibilidades para se fazer uma grande mostra, mas isso não foi feito.
De lá para cá, o interesse pelo modernismo, nas artes visuais, foi decrescendo. Muitos colecionadores que investiram vultosas somas para ter grandes coleções modernistas, ao longo dos últimos anos foram vendendo essas peças e as substituindo por arte contemporânea brasileira.
Hoje, na comemoração da efeméride, há pouco interesse em se ver uma exposição histórica do modernismo, com obras icônicas, documentos inestimáveis que raramente foram vistos pelo público. O colecionismo, o interesse privado do capital, está em outro lugar. Está na arte contemporânea, a arte brasileira que vem sendo exposta em bienais e feiras internacionais.
Como o IEB conseguiu esse acervo tão abrangente sobre o período?
O núcleo desse acervo, o primeiro impulso para formá-lo, foi a compra pela USP, em 1970, do espólio do Mário de Andrade. A família vendeu 80%, 90% do que eles tinham nas mãos. Veio a biblioteca do Mário com todos os exemplares, a correspondência dele com todo mundo – e dá para ver que ele se correspondem com todo mundo em todas as regiões do Brasil.
Veio também a coleção de arte. Ele foi um grande colecionador, com obras icônicas da Tarsila, muitos desenhos, do Di Cavalcanti, da Anita Malfatti… Reunindo tudo, biblioteca, documentos e obras de arte, dá mais de 30 mil itens, só do Mário de Andrade. Não temos tudo, mas temos a maior coleção de documentos e obras do modernismo brasileiro. A exposição, com 384 obras, é uma fração disso.