Por Juliana Câmara, compartilhado de Projeto Colabora –
Diante do aumento da insegurança alimentar, especialistas apontam caminhos para resolver de forma definitiva o problema que historicamente assombra o país
Em 2017 e 2018, 10,3 milhões de pessoas no Brasil, incluindo crianças e adolescentes, deixaram de comer em algum momento devido à falta de alimentos. Na classificação técnica, estiveram em situação de insegurança alimentar grave. Em outras palavras, podem ter passado fome. Os números sobre a segurança alimentar da população, revelados pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na quinta-feira, dia 17 de setembro, expressam não apenas a extensão do problema, mas a velocidade das perdas para o país num indicador que mede a percepção dos cidadãos sobre seu acesso a um direito humano tão básico como é a alimentação.
Desde 2013, ano dos dados anteriores aos divulgados agora, o estado de insegurança alimentar nas casas brasileiras saltou 62%. O indicador vinha caindo desde 2004, quando foi medido pela primeira vez. A pesquisa é feita a cada cinco anos. No primeiro levantamento, o índice foi de 35%. Caiu para 30% em 2009 e para 23% em 2013. Mas atingiu, em 2017 e 2018, o maior nível da série histórica: 37%. Na prática, são famílias que tiveram afetada a quantidade ou a qualidade da sua dieta em algum momento do período analisado. Não à toa, por ocasião da divulgação mais recente da POF, muito se falou que o país retrocedeu 15 anos em cinco. O que deu errado?
“Nós regredimos ou tivemos inação em processos de garantia da segurança alimentar e nutricional que estavam em construção. Alguns deles, ainda não consolidados. É fundamental olhar para esses números e ver uma história que, mesmo com fragilidades e insuficiências, estava em marcha e foi interrompida”, diz Maria Emília Pacheco, antropóloga, assessora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) entre 2012 e 2016.
A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), aplicada para se chegar aos resultados da pesquisa, classifica os domicílios de acordo com quatro níveis: segurança alimentar, e insegurança leve, moderada e grave. O primeiro é quando todos os habitantes têm acesso pleno e constante à comida necessária. A situação oposta começa a se desenhar quando há preocupação com a possibilidade de não conseguir obter alimentos em algum momento no futuro e ocorrem adaptações no consumo para garantir a quantidade, comprometendo-se a qualidade da dieta. Esta é a insegurança alimentar leve. Na moderada, o acesso dos adultos à quantidade apropriada de comida é restrito e, na grave, há momentos em que simplesmente não há alimentos para todos, incluindo crianças e adolescentes. É neste nível que a experiência da fome se torna uma realidade.
Os resultados também mostram que a incerteza sobre a quantidade e a qualidade da dieta foi maior nas regiões Norte e Nordeste, nos domicílios localizados nas áreas rurais do país, em casas onde a pessoa de referência é uma mulher ou alguém que se autodeclara ao IBGE como negro. Se há crianças ou adolescentes, os moradores estão mais propensos e enfrentar dificuldades no acesso à comida. Entre os lares que apresentaram nível moderado e grave de insegurança, mais da metade não está ligada à rede de esgoto e 24% não têm acesso à água da rede pública.
São pistas dos contornos que a fome assume entre os brasileiros e expressam seu entrelaçamento com as desigualdades territoriais, de gênero e raça, e sua correlação com a pobreza – os marcadores da insegurança alimentar grave coincidem com os dos grupos que têm as vidas mais afetadas pelas vulnerabilidades sociais no país. O percentual de pessoas expostas à privação grave de alimentos, 5%, é, inclusive, muito próximo à proporção dos que viviam em extrema pobreza, ou com 1,9 dólares por dia, em 2017 e 2018, conforme números também do IBGE divulgados na Síntese dos Indicadores Sociais (SIS): 6,5%.
“Costuma-se dizer que a crise levou ao crescimento da extrema pobreza e da fome. Esta é uma meia verdade. Não foi exatamente a crise, mas a forma de enfrentá-la. Para resolver o déficit fiscal, optou-se por cobrar o preço dos mais desfavorecidos”, avalia Francisco Menezes, economista que presidiu o Consea entre 2004 e 2007, e atualmente é pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e da ActionAid Brasil. Ele lista: “De um lado, tivemos retrocessos grandes na política de renda, com as regras que passaram a valer para correção do salário mínimo e a Reforma Trabalhista, com estímulo à terceirização e à precarização, diante do crescimento do desemprego. O valor do Bolsa Família ficou congelado, sem correção do valor repassado, nem aumento do número de famílias que acessam o programa. E, em dezembro de 2016, o Congresso Nacional aprovou o Teto de Gastos, que já retirou R$ 20 bilhões do Sistema Único de Saúde e reduziu 63% do orçamento do Sistema Único de Assistência Social.”
Fome X aumento do excesso de peso da população
Quem experienciou a fome no período analisado pela POF gastou menos com hortaliças, frutas, carnes, produtos panificados, aves, ovos, laticínios, açúcares e sais. Já cereais, leguminosas, farinhas, féculas, massas e pescados, cujo consumo é bastante comum na Região Norte, a mais afetada, foram os itens de maior consumo pelo grupo. Resultados da mesma pesquisa, que também fez a Avaliação Nutricional da Disponibilidade Domiciliar de Alimentos no Brasil, e que foram divulgados antes dos números sobre a segurança alimentar, em abril de 2020, indicam que, apesar de os alimentos básicos ainda serem predominantes nas mesas no meio rural, nas regiões Norte e Nordeste e entre as famílias de menor renda, o consumo de calorias provenientes de itens processados e ultraprocessados aumentou, acompanhando a tendência nacional.
As possibilidades e padrões de consumo revelados por esses dados remetem a outro desdobramento da pobreza para a alimentação dos brasileiros: os riscos de predominar, em suas casas, comida de baixa qualidade nutricional. A Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) de 2019, realizada anualmente pelo Ministério da Saúde, mostra o crescimento de 72% da proporção de adultos obesos entre 2006 e 2019, chegando a 20% da população. E o excesso de peso já afeta 55% dos cidadãos. O mesmo estudo aponta uma relação inversa com o tempo de escolaridade: o problema é maior entre a população com menos de oito anos de formação, o que no Brasil está relacionado à oportunidade de acesso a melhores postos de trabalho e, consequentemente, a uma melhor posição no estrato de renda.
“Há um tempo, falávamos que a obesidade era o outro lado da moeda da fome. Mas hoje a gente sabe que pobreza, obesidade e desnutrição fazem parte do mesmo processo”, afirma Elisabetta Recine, integrante da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, da Comissão Organizadora da Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e ex-presidenta do Consea (2017-2019). Ela complementa:
“Se, por um lado, os dados da POF que mostram que as pessoas concentram o consumo em alimentos básicos são bons porque, quando possível, há arroz e feijão em casa, por outro, dentro da lógica orçamentária e das estratégias que as famílias usam, esses produtos são mais caros, relativamente. E hoje já há estudos apontando que, se continuarem as tendências atuais, a partir de 2025, os alimentos ultraprocessados vão ser mais baratos que os básicos no Brasil”.
As estimativas do agravamento do quadro social para 2020 e as perspectivas para os próximos anos são ainda piores. Os impactos econômicos da pandemia da covid-19 foram minimizados pelo auxílio emergencial de R$ 600 até agosto e R$ 300 até dezembro. Mas, em março, o Bolsa Família, acumulava uma fila de 1,5 milhão de famílias consideradas aptas a ingressarem no programa e que esperavam já há um ano para receber o benefício. E em agosto o país tinha 13 milhões de desempregados. Soma-se a isso a alta de preços de itens básicos da alimentação, como arroz, feijão e laticínios. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou também em setembro que a inflação geral para as famílias mais pobres, em 2020, é o dobro do índice oficial.
Vozes da sociedade civil
Diante do aprofundamento dos desafios sociais, o #Colabora ouviu os três ex-presidentes do Consea sobre o que precisa ser feito para que o país volte a avançar no combate à fome. A extinção do conselho foi uma das primeiras medidas adotadas por Jair Bolsonaro, ainda no dia da posse, por meio da Medida Provisória 870. Vinculado diretamente à Presidência da República, ele reunia em sua composição diversas vozes, como de agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais, indígenas, mulheres, população negra, pesquisadores, e defensores dos direitos das crianças e dos direitos dos consumidores. O órgão era o espaço de diálogo entre governo e sociedade para a formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas.
O apoio à agricultura familiar surge como ponto fundamental nas falas dos especialistas. Com a incidência da fome maior na área rural, incentivos aos pequenos produtores viabilizam o plantio para subsistência e geram excedente que é destinado à venda, aumentando a renda nessas casas. Além disso, os agricultores atuam em maior equilíbrio com os recursos naturais e o meio ambiente.
“A agricultura familiar camponesa tem lógica própria de produção, de gestão do espaço, da natureza e de usos sociais da biodiversidade”, destaca Maria Emília Pacheco.
De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, o setor é responsável por 80% do valor da produção da mandioca no Brasil, 48% de café e banana, 69% de abacaxi e 42% da produção de feijão, tendo participação significativa na composição do cardápio dos brasileiros. Alegando contrariedade ao interesse público, em agosto, no entanto, o presidente Jair Bolsonaro vetou 14 das 16 medidas propostas pelo Projeto de Lei 735, aprovado na Câmara e no Senado Federal. O PL reunia ações emergenciais de apoio aos agricultores familiares para minimizar os impactos sociais e econômicos da covid-19.
Os três ex-presidentes do Consea são unânimes ao apontar desmontes de estruturas e de instrumentos de incentivo aos produtores familiares que aconteceram antes da atual crise sanitária como grandes obstáculos à retomada da superação da fome. Citam como exemplos o fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em 2016, transformado na Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo, do Ministério da Agricultura, e os cortes orçamentários em programas de apoio à produção e à capacitação dos agricultores, de incentivo à agroecologia e de formação de mercados.
“O argumento usado é que existe só uma agricultura e o que muda é o porte: pequeno, médio e grande. Nós precisamos contestar isso. Um país com uma agricultura camponesa tão importante precisa ter um ministério que lhe dê a devida atenção e que reconheça que há uma lógica própria por trás dela”, defende Maria Emília.
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), de compras da agricultura familiar para abastecimento de equipamentos públicos, como creches e unidades socioassistenciais, é um dos mais afetados pelo enxugamento de recursos. O montante destinado ao PAA caiu de R$ 1,2 bilhão em 2012, ano de maior investimento, para R$ 188 milhões em 2019, menor valor desde sua criação, em 2006. Para 2020, estavam previstos R$ 186 milhões mas, após mobilização da sociedade civil, o Governo Federal anunciou em abril mais R$ 500 milhões, valor cuja execução está lenta, denuncia Maria Emília. Na sexta-feira, 25 de setembro, foram confirmados mais R$ 72,9 milhões. Além de orçamento, os especialistas alertam que, desde 2015, o PAA perdeu características importantes e se burocratizou, afastando-o dos produtores de menor porte.
Estão ainda na lista de iniciativas que sofreram cortes de recursos o Programa Cisternas, que beneficia famílias do semiárido com acesso à água para consumo e produção, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, com assistência técnica agroecológica e incentivo à adoção de práticas cada vez mais sustentáveis, e a Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade, em que o governo pagava a mais pelo trabalho de conservação realizado por comunidades tradicionais. O fim do MDA levou também ao encerramento de programas destinados às mulheres da agricultura familiar, um reforço nas políticas de igualdade de gênero.
Embora a salvo de cortes orçamentários até o momento, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) sentiu impactos da pandemia. Ele destina à agricultura familiar 30% dos recursos para compra de itens alimentares para as escolas, somando 42 milhões de alunos que recebem refeições 200 dias por ano. Além do acesso à comida mais saudável para os estudantes e renda para os pequenos produtores locais, o PNAE alivia o orçamento de alimentação nas casas com crianças e adolescentes. Com a quarentena, muitos prefeitos e governadores optaram por distribuir vouchers para as famílias dos alunos comprarem alimentos, gerando incentivo ao consumo em grandes redes de supermercados.
Os especialistas acrescentam ainda que o fechamento de unidades de cozinhas comunitárias e restaurantes populares, que atendem às populações mais vulneráveis nos municípios, e a diminuição da capacidade de estoque da Companhia Nacional de Abastecimento, fator que também tem participação na inflação dos alimentos em 2020, precisam ser revistos.
Para eles, o combate à fome exige o envolvimento de diversos setores e níveis de governo, e tem múltiplas dimensões:
“É preciso enfrentar as questões estruturantes. Não há como voltar a colocar tudo em marcha sem antes cessar este processo de destruição ambiental. Precisamos rever esta flexibilização de ‘deixar passar a boiada’. A questão ambiental é intimamente associada às questões fundiária e alimentar. E, como estamos no período de debate sobre a Reforma Tributária, temos que rever o conflito distributivo no país”, diz Maria Emília.
Para Francisco Menezes, uma Reforma Tributária progressiva, com taxação das super riquezas e desoneração das classes média e mais baixas, faz parte de um tripé necessário para enfrentar o agravamento do quadro social. Completam o grupo de medidas a revogação do Teto de Gastos e a criação de uma renda básica permanente.
“Ainda não seria uma renda básica universal, mas avançaríamos com o Bolsa Família, corrigindo o valor repassado e incluindo um maior contingente da população. Chegaríamos a um grupo perto do que hoje é contemplado pelo auxílio emergencial, pessoas que não fazem parte do programa, mas que ficam vulneráveis a flutuações do mercado, ora têm renda, ora não têm, devido ao aumento da informalidade. A pandemia escancarou que o Brasil não pode mais continuar a fugir para a frente”.
Elemento fundamental para uma retomada é a participação social, afirmam eles, que concordam sobre a importância de recriar o Consea em nível nacional.
“É preciso que não silenciem as vozes, que se reconstituam os espaços de participação e controle social. Esta ideia da democracia representativa, em que os parlamentarem representam a população, é uma leitura restritiva da Constituição. Precisamos reconstruir a democracia participativa”, conclui Maria Emília.
Elisabetta Recine acrescenta que, embora o conselho nacional tenha sido desativado, a sociedade brasileira segue organizada em prol do direito à alimentação:
“Estamos articulados em torno da Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, que está acontecendo virtualmente, devido à pandemia. E continuamos existindo, esta agenda segue existindo. Há espaço de diálogo no Congresso e há também a rede de Conseas estaduais e alguns municipais que estão ativos, mesmo com as limitações que enfrentam”.