Como se num sonho

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, fala de um certo Senhor M que saiu de uma Ilha de sonho, mas aquela extensão de terra cercada por amigos por todos os lados não saiu dele.

“Como se num sonho, o senhor M desembarca na ilha de P numa barca silenciosa e vazia. Para a estranheza de muitos, em pleno dia de trabalho, não é que o senhor M, distraído, parece seguir o leme do seu coração? “Fazer o quê?!”, pensou. E assim começa a perambular pela ilha em forma de gravata tão ao feitio de seus devaneios.




Mal chega e o senhor M pede uma lampoticamente gelada para distrair a mente. Como é seu costume, tira uma foto para informar aos amigos que está na área. E fica por ali bebericando, puxando assunto com passarinho enquanto o pessoal não chega.

A manhã está quente, quentíssima. Vou passar no Zaru, ele diz a si mesmo. Não, vou passar no Zeca. Pronto, vou passar nos dois. Se fosse sábado ou domingo, passaria também no outro Z, Zé Lavrador da Casa de Artes.

Mal chega a um e já vai pro outro. Sai de lá em disparada até o apartamento onde morou na Rua Dois irmãos, parecendo até com quem se lembra de ter deixado a panela de pressão no fogo.

Corre à boca pequena que o senhor M só faz as coisas apressadamente, sempre querendo chegar antes de todo mundo. Não se sabe direito o real motivo de tal mania. Muito provavelmente é uma característica de todos aqueles que não podem se dar ao luxo de se atrasarem. Caso contrário, perdem a barca da ilha e da vida.

Lá está o simpático prediozinho. Como ele gostava daquela cozinha de azulejos azuis, como aliás devem ser os azulejos. Azuis azuis azuis.

Era bom estar de volta ao apê por aquela alameda que parece um pouco com coisa de outro mundo, com galhos retorcidos e uma casa no meio com toda pinta de centro espírita de linha branca.

Será que ele consegue entrar? Contenta-se, porém, em olhar o velho amigo de concreto da rua mesmo. Será que consertaram o vazamento da descarga? Que vontade de sentar naquele banco de praça verde.
O tempo está parado. Sufocante. Parado. E ele precisa ir. Ele precisa desanuviar.

O senhor M ia ao campo de futebol em busca do prezado amigo senhor A, mas dá meia-volta, afinal o velho amigo deve estar no continente.

A padaria azul não existe mais como era, mas o senhor M é capaz, com certeza, de reconstituí-la, pedaço por pedaço. Deus salve a mortadela.

Foi ali que ocorreu um São Cosme e São Damião daqueles, bons tempos. Ele estava por lá e pode sentir a alegria suburbana de quem sabe que está vivendo algo que parece ter desaparecido dos bairros do Rio de Janeiro.

Um caquinho azul está caído no chão como um filhote de passarinho que caiu do ninho. O senhor M vai lá, o pega delicadamente na mão e o coloca no lugar com quem monta um quebra-cabeças. Pronto. Ficou bom.

Depois passa pela casa da senhora I, segue rua afora a passos acelerados, vai bater na Praça do Exército. Não dá para passar no senhor W. Àquela hora ele está no continente com certeza.

Não estão em casa nem a senhora S nem a graciosa senhorita V nem o menino-passarinho. Mas o coreto do São Roque segue firme, firme. Apenas mais descolorido que de costume.


Será que tem alguém na Casinha Amarela? É o que o senhor M se pergunta apertando o passo, já esbaforido. E curiosamente vai do Parque Darke até a praia da Imbuca voando pelos pedalinhos da praia da Guarda.

Do farol, alguns peixes cor de prata de um olho só parecem cortejá-lo, fazendo peripécias mais afeitas a golfinhos da Baía do que propriamente a peixes.

Uma brisa boa espalha um cheiro de flor enquanto o senhor M está a caminho do Iate Clube.

Ele aprendeu na ilha a ter olfato de perfumista. Ele conhece o cheiro de bosta de cavalo, de farinha de osso, de cocô de passarinho, de peixe vivo e de peixe sendo frito, de flor de muitas espécies, de jardins bem cuidados, de rosas rubras, do cheiro de mofo de casas de veraneiro que foram esquecidas até pelos fantasmas, de jacas cuja árvore fica no meio da pista em busca de desavisados e imprudentes a bordo dos Ecotáxis.

E sobretudo, o senhor M sabe da brisa que vem da Baía da Guabanara, uma brisa que faz zunir os ouvidos, lá pras bandas da Cocheira, quando está a fim de mostrar ao que veio. Uma brisa de entortar árvores e levantar telhados das casas, saias das mulheres e das trans. Brisa, não.

Vento bravo, que é capaz de apertar a gravata-borboleta da ilha, de transformar árvores adultas em gravetos, de emborcar barcos.

O vento bravo, pensa o senhor M, é capaz de apagar a chama da refinaria; mas nem ele é capaz de derrubar o gambá que se equilibra no muro do quintal da casa da Cocheira.

É quando o senhor M acorda. Ainda são três e meia da manhã. Ele não está na ilha? Não! Cadê a lampoticamente gelada? Cadê, cadê?

Ouve-se ao longe mas nem tão longe o alarido dos garis que conversam enquanto recolhem o lixo do seu bairro no continente.

Ele decifrou o sonho: o homem-menino-passarinho está cansado de viver em gaiolas.

É a voz da realidade? Fazer o quê? É o inacabado do encanto? É o encanto do inacabado?

O jeito é ir para cozinha e passar um bom café. O dia promete. Hoje ninguém chegará na escola mais cedo do que ele. Ninguém, ninguém, ninguém.”

Foto: Washington Luiz de Araújo

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019),  Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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