Como viver sendo negro

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Por Ernesto Xavier, jornalista, via João Lopes, Facebook – 

“O ônibus avançava pela noite argentina em direção à Posadas. Algo em torno de 60 pessoas em um veículo de 2 andares. Fui o primeiro a comprar passagem há duas semanas atrás. Consegui a poltrona número 1. 

Vi a estrada e suas poucas luzes bem diante de mim. 22 horas e Coltrane tocava “My favorite things” em meus ouvidos quando uma policial acena com a lanterna para que o motorista do ônibus pare. Ela sobe.




Estamos entre o nada e lugar nenhum. Não tenho noção de que ponto do mapa ocupamos.

Estou sentado sozinho. Não há outro passageiro na poltrona ao meu lado. Nas duas poltronas do outro lado do corredor estão um senhor e um rapaz argentino.

Ela vai primeiro até eles e faz algumas perguntas rápidas. Se vira para mim e pede meu documentos. Pego o passaporte na mochila que está entre minhas pernas. Apresento.

– Abra a mochila. – diz ela secamente.

Abro. Ali estão minha câmera, microfone, lentes.

– Você é fotógrafo?

– Não, sou jornalista.

– Está indo para onde?

– Posadas. Para um congresso.

– Abra a outra parte da mochila.

Ela está fixa em mim. Já percebi que sou seu alvo. Todos os passageiros estão olhando para mim. Minhas colegas de mestrado e congresso estão em poltronas mais para trás, tensas. Eu controlo meu ímpeto e respondo a todas as perguntas com tranquilidade utilizando todo castellano que aprendi. Abro o outro compartimento da mochila. Ela verifica cada coisa, revista a mochila. Parece não acreditar que não vá encontrar algo. Pede para que eu feche a mochila.

– Você tem alguma outra bolsa?

– Sim, tenho uma mala.

– Onde está?

– No bagageiro do ônibus.

– Vá para fora do ônibus.

Neste momento me sinto perdido. Desço. Não sei o que vão fazer, quais são os procedimentos.

Percebo que onde quer que eu vá, serei um preto, um suspeito. Não foi a primeira vez que isso aconteceu comigo na Argentina. Em 2014, no aeroporto, na fila lotada para embarcar, dois policiais (acho que eram) vieram até mim para me fazer todo tipo de pergunta. Apenas para mim e outro rapaz negro que estava um pouco atrás. Por “coincidência” éramos os únicos negros da fila.

Do lado de fora do ônibus um policial está a minha espera. Um funcionário da empresa de transporte abre o bagageiro. Levo um certo tempo para identificar minha mala. Não lembrava como se falava “roxo” em espanhol. Até que apontei a mala e ele a retirou. Coloco a mala no asfalto, abro, ele observa. O tripé da câmera está ali. Ele faz a pergunta:

– O que você faz?

– Sou jornalista.

– Vai pra onde?

– Posadas.

– Pode fechar a mala e subir.

Subo humilhado. Fui o único a passar pelo procedimento. Preciso dizer que eu era o único negro do ônibus?

Sento novamente em meu lugar e estou com os dentes cerrados pelo nervosismo.

Suspeito.

Sempre.

Minhas amigas vem até mim. Estão preocupadas. Querem saber como estou. Digo que estou bem. Passou.

A gente aprende desde cedo a lidar com isso. Vivendo no fio da navalha, se esgueirando, aprendendo a apanhar e também a bater na hora certa. Sabendo calar.

Escolhendo o momento de falar. Isso é sobrevivência. Se nós negros ainda estamos vivos é porque aprendemos a passar por cima e batalhar com as armas que temos.

Cheguei à Posadas para um congresso internacional de Antropologia.

Vou falar um pouco sobre minha pesquisa relacionada aos depoimentos de racismo na internet.

Cá estou sendo pesquisador e objeto de estudo ao mesmo tempo.

A vida é irônica.

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