Com o agro militante para tomar o poder e mudar leis, a mídia corporativa, um mar de fake news, foi uma década de farra neoliberal no RS
Compartilhado de GGN
por Afonso Lima
Os relatos foram contínuos desde sábado:
“Eles saíram de casa só com a roupa do corpo.”
“Minha família está desalojada. Meus pais foram levados para a fábrica da Toyota. Minha irmã, não consegui falar com ela.”
“Tudo maluco, água chegando na nossa praça, a saída da rua, tem de sair de ré. Em casa sem água e sem luz”.
“A roupa está na churrasqueira. Parece que uma bomba explodiu lá em casa”.
“Jamais esquecerei o rosto do bombeiro que me retirou daquele sofrimento”.
“No Menino Deus, teve de tirar as pessoas de casa. Meu colega que me abrigou no primeiro dia, embora não tenha perigo de entrar água, está no centro, supermercado sem luz, só aceita dinheiro, ele ficando sem água, pegou uma muda de roupa com a família e foi pra casa da sogra.”
“Coisa horrível o que estamos passando. A prima, entrou água na casa dela 2 vezes. A primeira vez 32cm e a segunda 60 cm. Continua tudo embaixo de água. Sem previsão de voltar para casa.”
No meio da tempestade, buscamos informações na rádio Gaúcha, da RBS, filiada da Globo de Porto Alegre. Programação contínua, bons repórteres, tudo muito profissional. Mas com o tempo, algo começa a me incomodar. O que falta nessa cobertura? Responsabilidades, leis mudadas, como a sociedade civil foi barrada pelo poder público agora à serviço dos empresários.
Senão, vejamos…
2023 – “Parece que tudo está à venda… estão sendo esvaziadas todas as formas de controle social” – Gerson Almeida, Sociólogo, ex-secretário do Meio Ambiente de Porto Alegre (Brasil de Fato – 17 de julho de 2023).
2021 – Na visão da coordenadora do Instituto Mira-Serra [na gestão Eduardo Leite], tem havido um “tratoraço” no Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) (Sul 21 – novembro de 2021).
2017 – Extinção da Secretaria Municipal do Meio Ambiente pelo prefeito de Porto Alegre Marchezan Jr. (MBL/PSDB)
2016 – Marcel van Hattem e outros votaram pelo fim da fundação Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan) responsável pelo planejamento integrado da região com mais de 4 milhões de pessoas – (Sul 21 -dezembro de 2016)
Ainda, segundo o professor da UFRGS, Rualdo Menegat, o ex-prefeito Marchezan Júnior, acabou com educação ambiental e de prevenção nas escolas, os Laboratórios de Inteligência do Ambiente Urbano (LIAU).
Lembrei do tuíte clássico do jornalista Adriano Marcello (@a_marcellos), de 2023, em que resumiu o buraco em que a cidade caiu:
“Porto Alegre teve quatro prefeitos do PT que revolucionaram e colocaram a cidade no mapa do mundo. Todos acompanhados de intensa oposição da RBS, afiliada da Rede Globo. Finalmente, derrotaram o PT e se iniciou o processo de decadência política e cultural…”
Um empresário cede espaço para o centro de distribuição de alimentos (CEASA). Mas, no outro dia, são minutos intermináveis do seu presidente. Puxa!, penso, é bem o momento para a RBS fazer propaganda de farmácia com a “Ação João popular” – pessoas seguem sem comida em cidades como Canoas e Guaíba. Pessoas foram “abrigadas” ao relento na rodovia em Eldorado do Sul, por ser o único lugar seco, onde não havia alimento algum. Foi também essa cobertura que trouxe o modelo econômico do abandono bolsonarista.
Com o agro militante para tomar o poder e mudar leis, a mídia corporativa local, um mar de fake news, foi uma década de farra neoliberal no RS sem olhar para a ciência ou assistência social. Agora, a RBS denuncia que os moradores de rua estão “roubando comida”.
O que é difícil de explicar fora do estado é o monopólio do pensamento. Melo e Leite avançaram pauta de destruição sem correção do grupo RBS. A cobertura de caraMelo que a ZH colocou sobre o prefeito brucutu deixou passar o abandono completo da capital. Cúmplices.
Um amigo relata:
“O que eu noto em Porto Alegre é muita sujeira e abandono da prefeitura, coisas começadas sem fazer… e muitos ratos… claro pela sujeira”.
Bolsonaristas falam muito em segurança. Mas como prevenção não dá dinheiro, não tem protocolos e investimento. Resultado?
“O centro de Porto Alegre tá todo saqueado. Farmácia, supermercado, loja, mercado público, tudo” (Metrópolis – 08 de maio de 2024).
Toda a indignação contra a “corrupção” deu em propostas de destruição e no fim de políticas protetivas pela bancada ruralista para expansão predatória.
A expansão da soja e a retirada de ecossistemas que podiam minimizar as inundações – chegando ao modelo agro-exportador concentrado criado pela ditadura – são o plano de fundo.
Mas a política abandono-venda dominou os últimos anos, como ocorreu com o Departamento Municipal de Água e Esgoto. Segundo o diretor do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa), Edson Zomar de Oliveira:
“A solução não é privatizar porque o problema não é ser uma autarquia pública. O problema é a falta de investimentos no DMAE. Desde 2017, nós temos tentativas de privatização. E nós temos ataques à autonomia da instituição, já que todas as decisões passaram a depender da administração centralizada. Além de um sucateamento da empresa, sem a reposição de funcionários há anos” (Sul21 – janeiro de 2022).
A cidade pioneira no ambientalismo, com a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, criada em 27 de abril de 1971, agora não tem caminhões-pipa e vê uma guerra da água nos supermercados…
Por que 56,35% dos gaúchos votaram no projeto de destruição?
Se Vargas teve uma Rádio Nacional e a ditadura empresarial-militar teve a Globo e a Folha, não há alternativa de comunicação de massa no Rio Grande. Importante pensar na comunicação que elegeu esse desastre. Rádios só evangélicas e do agro. Redes sociais sem regulamentação; para o celular, fábricas de mentiras que redirecionam a indignação para alvos falsos – minorias, mulheres, imigrantes, pobres. Vemos agora uma enxurrada de coronéis, empresários, militares dando palestra na rádio Gaúcha.
O prefeito Melo, totalmente perdido, em coletiva hoje (09/05): “O que deveria ter sido feito lá atrás?”, pergunta.
No Sul 21:
“Quem mais aprova projetos imobiliários também está entre os maiores doadores da campanha de Sebastião Melo (MDB) à Prefeitura de Porto Alegre em 2020… Nos últimos anos, esse seleto grupo de empresários conseguiu o que ninguém havia conseguido antes em Porto Alegre: derrubar as leis urbanísticas e ambientais que impediam a construção de grandes empreendimentos na orla do Guaíba, ajustar a legislação municipal tantas vezes quanto necessárias para caber nos seus interesses…” (Sul 21 – 7 de novembro de 2023)
No meio de tanto caos, eu reverencio o jornalista PG, que teve coragem de cobrar responsabilidades na rádio. Os portões vazavam, é preciso investir em manutenção, esclarece o entrevistado.
É como se vivêssemos um neocolonialismo urbano, com toque de supremacia branca e coronelismo, em que os seres humanos são insumos para o lucro, votos a serem mobilizados com o medo e o pânico moral. E a comunicação é um dos problemas.
Afonso Lima, Doutorando UnB.