Por Conceição Lemes, Viomundo –
por Conceição Lemes*
Nesse domingo, 4 de janeiro de 2015, o jornalista Leandro Mazzini publicou em sua Coluna Esplanada, noUOL: Lula fez tratamento sigiloso e controlou novo câncer.
Na reportagem, ele diz que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva:
“combateu de um ano para cá um novo câncer e o controlou”;
“foi acometido de um câncer no pâncreas, que teria sido descoberto no início de 2014”;
“passou a visitar esporadicamente o Hospital Sírio Libanês em São Paulo durante a madrugada, entrando de carro pela garagem privativa do corpo clínico para evitar boataria. E tomou um forte medicamento para evitar a quimioterapia”.
“estaria tomando diariamente um medicamento importado dos Estados Unidos, que custa cerca de R$ 30 mil por mês (ainda não comercializado no Brasil). Seria sob o princípio do Bevacizumab, com uma versão mais recente e potente do popular Avastin, que ameniza o quadro clínico e a dor, e evita a quimioterapia”.
“Isso é mentira e um desrespeito com o ex-presidente”, rebate, indignado, José Chrispiniano, assessor de imprensa do Instituto Lula, em conversa com o Viomundo.
“Lula sempre tratou dos seus problemas de saúde com total transparência”, reforça. “Quando ele teve diagnosticado o câncer na laringe, a imprensa soube no mesmo dia. O próprio ex-presidente fez questão de que tudo fosse divulgado.”
O diagnóstico foi tornado público em 29 de outubro de 2011. Durante cinco meses, Lula submeteu-se a quimioterapia e radioterapia. Em 28 de março de 2012, os exames revelaram que o tumor havia desaparecido por completo.
Desde então, como todo paciente que teve câncer, Lula faz avaliações oncológicas de rotina no Hospital Sírio-Libanês, onde ele se tratou.
A última foi em 15 de novembro de 2014. Portanto, há 50 dias. Na ocasião, o Sírio-Libanês divulgou uma nota. E republicou-a no último domingo, 4 de janeiro de 2015, quando a reportagem de Mazzini foi veiculada.
Diante dessa nota que informa que não se detectou nada de errado com a saúde de Lula, eu pergunto:
1) Por que, apesar de há mais de um mês a assessoria de imprensa do Instituto Lula ter negado veementemente o novo câncer e de a nota do Sírio-Libanês dizer que estava tudo normal com Lula, Mazzini publicou a matéria? Lembrem-se de que ele disse que o “tumor de pâncreas teria sido descoberto no início de 2014”.
2) Ao observar que o “tumor de pâncreas teria sido descoberto no início de 2014” e que a nova doença não consta da nota do Sírio-Libanês, o jornalista deixa subentendido que a equipe médica que cuida do ex-presidente e a assessoria de imprensa do Instituto Lula estão mentindo. Não caberia aí um processo?
3) Por que as supostas “fontes” do jornalista (“um médico do Sírio, que não compõe a equipe que cuida de Lula; um diretor do PT; um assessor especial do Palácio do Planalto; e um parlamentar amigo de Lula”) “escolheram” justamente um dos tipos de câncer mais agressivos e letais? De antemão, aviso: no PT, não há a figura do diretor.
4) Quem merece mais crédito: os oito médicos envolvidos na avaliação oncológica de Lula, cujos nomes aparecem na nota do Sírio-Libanês, ou um suposto médico anônimo, que prefere não se identificar? Lembro ao doutor hipotético que ele, de cara, está infringindo o Código de Ética Médica.
5) Que mão ou mãos estão por trás dessa falsa, cruel e malévola notícia?
NÃO HÁ TRATAMENTO QUE EVITE A QUIMIOTERAPIA NO CÂNCER PANCREÁTICO
Do ponto de vista de informação médica, a reportagem de Mazzini tem imprecisões e erros. Ela desmorona, não fica em pé, se for lida com atenção por alguém que lida com a área de saúde.
Primeiro: a matéria não diz se o tumor de pâncreas é uma metástase do câncer na laringe ou se ele é originário do próprio pâncreas.
O câncer de laringe pode dar metástase localmente, mais precisamente nos gânglios cervicais. Mas suas células malignas podem se disseminar à distância para fígado, ossos, sistema nervoso central e, principalmente, pulmão.
Assim, considerando-se que tumor de laringe habitualmente não dá metástase em pâncreas, supõe-se que Mazzini quis dizer que o novo câncer seria um tumor primário do pâncreas.
Segundo: ao contrário do que diz Mazzini, não existe tratamento – nem aqui nem no exterior — para evitar a quimioterapia e a radioterapia no câncer do pâncreas.
Terceiro: tampouco é um tumor “bonzinho”, que pode ser tratado facilmente com uma “aspirina”, como faz parecer nas entrelinhas, permitindo que Lula exercesse normalmente as suas funções não apenas durante todo o ano de 2014 como em 2013.
O pâncreas, como todos sabem, é uma glândula localizada na parte superior do abdômen, atrás do estômago, colada ao duodeno. A sua principal função é a produção de insulina, hormônio responsável pela manutenção dos níveis adequados de glicose ( “açúcar”) no sangue. Mas ele também produz a enzima pancreática, fundamental no processo digestivo. É dividido em três partes: cabeça, corpo e cauda.
Segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, 90% dos casos diagnosticados são do tipo adenocarcinoma, ou seja, se originam no tecido glandular do pâncreas. A maioria afeta a cabeça do órgão.
Os sintomas mais perceptíveis da doença são perda de apetite e de peso, fraqueza, diarreia e tontura.
Os tumores de cabeça do pâncreas provocam icterícia: pele e olhos ficam amarelados devido à obstrução do canal pancreático.
Há casos em que a doença se “esconde” na forma de dor na região das costas, e o paciente é tratado como tivesse um problema muscular ou de coluna. Outro sinal de alerta é o aumento do nível de glicose (açúcar) no sangue.
Pelo fato de os seus sinais (aquilo que o médico vê) e sintomas (aquilo que você sente) se confundirem com os de outras doenças, o câncer de pâncreas é de difícil detecção na fase inicial. Em consequência, seu diagnóstico tende a ser tardio.
O câncer de pâncreas é considerado um dos mais letais e destrutivos. O seu comportamento agressivo e a baixa eficácia das terapias atuais fazem com que seja muito alta a sua taxa de mortalidade.
Normalmente, os seus portadores morrem entre o primeiro e o segundo ano devido a recidivas e metástases (disseminação de células malignas do pâncreas para outros órgãos) no fígado ou no peritônio.
A sobrevida após 5 anos é inferior a 5% (Hospital de Câncer de Barretos). Ou entre 5% a 20% (Inca). E depende do tipo de tumor do pâncreas. Por exemplo, se ele é responsivo ao tratamento.
BEVACIZUMABE E VERSÕES MAIS NOVAS NÃO AUMENTAM SOBREVIDA
“Quando o tumor de pâncreas está no início, o tratamento é cirúrgico”, explica a médica oncologista Solange Moraes Sanches, do Hospital A. C. Camargo, em São Paulo. “São cirurgias grandes, que exigem prolongada recuperação.”
“Nos casos avançados, o tratamento baseia-se em quimioterapia e a radioterapia também pode ser necessária”, afirma a oncologista. “São esquemas pesados, que produzem muitos efeitos colaterais.”
Ainda não há uma droga específica para o câncer de pâncreas. Usam-se quimioterápicos utilizados para combater outros tumores.
Há três opções aceitáveis.
1. Apenas o quimioterápico gencitabina.
2. A combinação de gencitabina com oxaliplatina ou outra platina.
3. Ou, então, o esquema conhecido como folfironox. Consiste na associação das drogas fluorouracil, oxaliplatina e irinotecano.
A opção por um ou outro esquema, depende de cada caso.
“Consequentemente, uma pessoa submetida a um tratamento para neoplasia de pâncreas necessita de certos cuidados que impediriam uma jornada exaustiva de trabalho”, enfatiza a doutora Solange Sanches.
Ou seja, se o ex-presidente tivesse feito um desses tratamentos, ele não teria condições de participar da campanha eleitoral de 2014 como participou. Pelo que todos nós vimos na televisão, ele estava bem disposto, com bom peso, com cabelo.
– E no primeiro semestre quem garante que ele não se tratou do suposto câncer de pâncreas? – alguém deve estar achando que nos pegou na curva.
Quer melhor prova de que tudo estava bem com Lula do que a coletiva que ele concedeu aos blogueiros, em 8 de abril de 2014? Confiram aqui como ex-presidente estava todo lépido e faceiro.
Depois, em 16 de maio de 2014, Lula participou do IV Encontro Nacional de Blogueiros e Ativistas Digitais, em São Paulo. Querem mais? Acessem o site do Instituto Lula para acompanhar a maratona do ex-presidente.
– E o bevacizumabe, mencionado pelo jornalista?
O bevacizumabe é o princípio ativo do Avastin, medicamento fabricado pela Roche. Não se trata de um quimioterápico clássico, mas de um anticorpo monoclonal. Ele reduz a chegada de sangue ao tumor, fazendo com que diminua a proliferação de suas células por falta de nutrição.
Segundo a sua bula, é indicado no tratamento de câncer colorretal, pulmão, mama, rim, ovário, tuba uterina e peritônio.
O bevacizumabe é comercializado no Brasil. Habitualmente, é utilizado em doses 5mg/kg a cada duas semanas. Normalmente sua aplicação é hospitalar por se tratar de medicação que é injetada na veia junto com soro.
“Só que o bevacizumabe não é usado sozinho, mas sempre associado à quimioterapia”, cientifica o oncologista Munir Murad, coordenador do Programa de Residência Médica em Cancerologia Clínica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Em 2009, o prestigiado Journal of Clinical Oncology publicou um estudo realizado com 607 pacientes portadores de câncer metastático, onde o bevacizumabe foi usado em combinação com os quimioterápicos gencitabina e erlotinibe.
Eles foram divididos em dois grupos: 301 tomaram os quimioterápicos mais placebo (remédio com aparência do verdadeiro, mas que não tem qualquer ação terapêutica); e 306 usaram quimioterápicos mais bevacizumabe.
A associação de medicamentos não mudou a sobrevida dos pacientes. O grupo que tomou bevacizumabe teve uma sobrevida média de 7,1 meses. E o grupo que usou placebo teve sobrevida média de seis meses.
Portanto, é mais um equívoco da matéria de Mazzini, já que o bevacizumabe não é usado da maneira que a matéria indica.
O jornalista se refere ao medicamento “milagroso” de Lula desta forma: “Seria sob o princípio do Bevacizumab, com uma versão mais recente e potente do popular Avastin, que ameniza o quadro clínico e a dor, e evita a quimioterapia”.
Só que o bevacizumabe é o próprio Avastin. Talvez as drogas que se enquadrariam nesse perfil impreciso descrito por ele sejam as versões mais novas do bevacizumabe: o axitinibe ou o aflibercept, que já foram testadas para câncer de pâncreas avançado.
“Só que elas não são consideradas tratamento padrão para o adenocarcinoma de pâncreas nem evitam a quimioterapia”, atenta Murad. “Além disso, os estudos publicados até agora mostram resultados negativos.”
A adição do axitinibe ou do aflibercept à gencitabina não melhorou a sobrevida dos pacientes com câncer avançado de pâncreas em comparação com aqueles que só receberam o quimioterápico mais placebo. Ou seja, a estratégia de acrescentar uma dessas medicações se revelou ineficaz até agora.
“Por que então alguém que, como o ex-presidente Lula, pode ter acesso aos melhores tratamentos abriria mão do tratamento padrão para câncer de pâncreas por um que não funcionou em ensaios clínicos criteriosos?” questiona o oncologista Munir Murad. “A versão contada pelo jornalista não fecha, não tem sentido.”
Eunice G. acompanhou o caso do seu pai, que sobreviveu sete anos depois do diagnóstico de adenocarcinoma na cabeça do pâncreas com uma peculiaridade raríssima: o tumor não se disseminou para outros órgãos, ficou restrito ao pâncreas. Ou seja, um caso extraordinário não apenas no Brasil mas no mundo.
“Foram vários ciclos de quimioterapia durante um ano e meio na fase inicial do tratamento, mais 28 aplicações de radioterapia, seguido de cirurgia, sem contar o restritíssimo regime alimentar, que é uma loucura”, nos conta Eunice.
“Na metade do caminho, foram mais sessões de quimioterapia e mais cirurgia. Houve a retirada total do pâncreas e meu pai ficou diabético, dificultando ainda mais a sobrevida”, prossegue.
“A cada tratamento, ele ficava um bagaço. Quem conhece pessoas que tiveram câncer no pâncreas sabe que o tratamento é uma paulada. A maioria não aguenta sequer completá-lo. Logo, Lula não estaria inteiraço durante 2014, como o Brasil inteiro pode ver que ele estava.”
Seria desinformação? Ou pura e simplesmente má-fé?
Uma coisa é certa. Não se deseja câncer para o pior inimigo. Muito menos o de pâncreas, cujo diagnóstico representa praticamente uma sentença de morte. As supostas fontes do jornalista sabiam disso. Não à toa “escolheram” a dedo o novo tumor.
O objetivo é político: deixar a dúvida no ar, visando minar Lula com vistas às eleições presidenciais de 2018.
O que as supostas fontes talvez desconheçam é que, pelo menos segundo os hindus, o que desejamos de mal para outros, volta para a gente. É a lei do retorno. Aliás, qualquer um de nós pode ter um câncer.
“O que foi feito com ex-presidente Lula nessa matéria é cruel e desumano. Uma canalhice sem tamanho”, arremata Eunice G. “Os responsáveis por isso deveriam ser presos ou tratados apenas com bevacizumabe. Talvez para eles isso desse certo. Um verdadeiro ‘milagre’.”
*Conceição Lemes é a mais premiada repórter de Saúde do Brasil.
PS do Viomundo: Já imaginaram se a “reportagem” tivesse sido publicada no Reino Unido? O que aconteceria com o repórter e com o UOL? Quer saber? Clique aqui.