Por Cesar Calejon, publicado em Jornal GGN –
Dados apresentados na semana passada pelo IBGE revelam que a concentração de renda aumentou em 2018, acentuado ainda mais a já exacerbada desigualdade social brasileira.
Asteroides, guerras nucleares, pandemias e inteligência artificial. Nos filmes de ficção científica, a ameaça que oferece risco ao ser humano geralmente assume uma forma épica, ampla e dramática, que é elaborada para arrepiar os telespectadores. Contudo, o maior problema com o qual nos deparamos e que já nos atormentava muito antes do surgimento das primeiras sociedades civis modernas (Paz de Vestfália) tem notoriamente um caráter bem menos cinematográfico.
De diferentes maneiras, a desigualdade da distribuição de renda e da riqueza foi um tema que sempre esteve presente nas relações sociais e na dinâmica do funcionamento humano, mas a primeira Revolução Industrial (1760) realmente trouxe essa questão para o cerne do debate. Ou deveria, porque ela é realmente fundamental no que tange às forças que moldam toda a realidade social. De acordo com o The World Inequality Report 2018 (Pesquisa Desigualdade Mundial 2018), que foi apresentado por um time de pesquisadores franceses e estadunidenses em dezembro de 2017, o Brasil atingiu uma das maiores taxas de concentração de renda e riqueza do estudo. Ou seja, somos um dos países mais desiguais do planeta, ao lado da África do Sul e regiões do Oriente Médio.
Dados apresentados na semana passada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que a concentração de renda aumentou em 2018, acentuado ainda mais a já exacerbada desigualdade social brasileira. O rendimento médio mensal de trabalho da população 1% mais rica alcançou a obscena marca de 34 vezes maior do que o da metade mais pobre em 2018.
Isso significa que o TOP 1% (cerca de 1.4 milhão de pessoas) obteve ganho médio mensal de R$ 27.744, enquanto os 50% menos favorecidos (mais de 100 milhões de brasileiros) ganharam até R$ 820 ou simplesmente não possuem renda. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua). O trabalho mostra ainda que esse resultado influenciou o aumento do Índice de Gini, instrumento que mede o grau de concentração de renda em determinada nação e chegou a 0,545, o pior resultado brasileiro desde 2012.
Mas como está realmente organizado o arranjo sociopolítico brasileiro? Apesar de existirem de forma oficial na literatura que estuda o tema as “classes D e E”, a maior parte da população brasileira foi ensinada, desde os primeiros anos do desenvolvimento infantil, a acreditar que está, socioeconomicamente, posicionada entre o que foram intituladas “classes B e C”. Obviamente, essa é apenas uma questão semântica sobre como classificar a quantidade de acesso aos recursos que determinado cidadão ou família possuem, certo? Não. Este não é um ponto meramente semântico e tal reducionismo serve para simplificar um aspecto nevrálgico e bem mais complexo do nosso funcionamento social e do debate que o envolve. O abismo social existente entre as “classes A e E” no Brasil precisaria de muitas outras letras para ser compreendido de forma mais precisa.
Em 2018, existiam 43 bilionários no país. Desses, apenas seis possuíam o patrimônio equivalente ao de toda a metade mais pobre da população brasileira. De acordo com a revista estadunidense Forbes, o Brasil alcançou um recorde de 65 membros em sua lista de bilionários em 2014. “Então, os problemas começaram, e o número de super-ricos do Brasil caiu rapidamente para apenas 42 em 2018”, ressalta o texto publicado em março de 2019. “Mas o Brasil está reagindo”, continua a publicação da revista, “pelo menos no que diz respeito aos muito ricos […] No total, a Forbes encontrou 58 bilionários no Brasil este ano (2019), que juntos totalizam uma fortuna de US$ 175 bilhões (mais de R$ 660 bilhões)”, garante a matéria. Essa é a “classe A” do Brasil.
Já a “classe B” é formada por 1.430 pessoas, que possuem renda mensal (salários mais a rentabilidade do capital privado acumulado) a partir de algo em torno de R$ 5 milhões. Abaixo, está a “classe C”, com 14.300 pessoas que têm renda mensal a partir de R$ 1 milhão. Depois, temos a “classe D”, com 142.500 integrantes que capitalizam a partir de R$ 188.925 por mês. Em seguida, temos a “classe E”, que também é chamada de TOP 1%, com 1,4 milhão de brasileiros que têm renda mensal a partir de R$ 36.762. O TOP 10% ou a “classe F” tem quatorze milhões de cidadãos com renda mensal a partir de R$ 7.425. A “classe G” (MID 40%) tem 57 milhões de pessoas que ganham a partir de R$ 2.178 por mês. Literalmente por último, temos a “classe H” (BOTTOM 50%) com 71,2 milhões de brasileiros que vivem com recursos mensais a partir de R$ 1.122, e a “classe I”, dos ditos indigentes, que não são contabilizados nestes tipos de estudo porque não integram a População Economicamente Ativa (PEA) do Brasil.
Esta é a organização socioeconômica do Brasil em 2019. Mais alarmantes do que este cenário são os indícios científicos, de pesquisadores nacionais e estrangeiros, que demonstram que a equação distributiva de renda e da riqueza está caminhando para uma concentração ainda mais exacerbada não somente no Brasil, mas em todo o planeta.
“A história recente do Brasil indica que houve uma escolha política pela desigualdade”, afirmou Marc Morgan, pesquisador do World Inequality Lab, em entrevista publicada pelo jornal Folha de São Paulo, no dia 24 de setembro de 2017. “Dois fatores ilustram isso: a ausência de uma reforma agrária e um sistema que tributa mais os pobres. Para nós, estrangeiros, impressiona que alíquotas de impostos sobre a herança sejam de 2% a 4%. Em outros países chegam a 30%. A tributação de fortunas fica em torno de 5%. Enquanto isso, os mais pobres pagam ao menos 30% de sua renda via impostos indiretos sobre luz e alimentação”, disse o economista à Folha de São Paulo.
Como é possível explicar que, em uma organização social na qual a População Economicamente Ativa é composta por aproximadamente 142 milhões de pessoas (população total de 209 milhões), 71,2 milhões aceitem viver com recursos mensais de R$ 1.122 (classe H) e outros 57 milhões não se revoltem com os R$ 2.178 (classe G) que recebem por mês? Por que esses mais de 128 milhões de brasileiros que literalmente carregam as estruturas industrial e financeira do País nas costas e ficam com a menor fatia dos dividendos não pressionam as classes mais abastadas por uma distribuição mais igualitária de capital e renda?
Quem forma este seleto grupo de indivíduos que faz a manutenção do paradigma político atualmente vigente no Brasil? Quem são as principais famílias e grupos econômicos que controlam os sistemas de mídia, tecnologia e telecomunicações, energia, combustíveis, bancário, alimentação, vestuário, entre tantos outros que formam o capital corporativo? Como essas forças interagem com os parlamentares brasileiros e com os grupos internacionais que possuem agendas similares ao redor do mundo? Ou seja, para quem interessa, de fato, que a desigualdade continue sendo estimulada como uma escolha política e que, principalmente, a maioria da população continue aceitando esta organização de forma complacente? O simples fato de refletir sobre estas perguntas oferece um conteúdo tão significativo quanto obter as próprias respostas, mas todo este processo de questionamento requer certo tipo e nível de educação.