Artigo publicado na revista de nutrição da Universidade de Oxford escancara publicidade da soja, mascarada de pesquisa científica
Por Nathália Iwasawa, compartilhado de O Joio do Trigo
Consumir ultraprocessado à base de soja é melhor do que consumir carne não processada ou minimamente processada? Tome um fôlego e trinta segundos para pensar em uma resposta antes de continuar.
Essa pergunta polêmica pode levar a uma longa discussão, sem que tenhamos conclusões incontestes. Mas na perspectiva de Mark Messina, John Sievenpiper, Patricia Williamson, Jessica Kiel e John Erdman, a resposta é bem mais simples: carne e leite à base de soja não deveriam entrar no grupo dos ultraprocessados da classificação NOVA. Eles também defendem que, principalmente do ponto de vista animal e ambiental, esses produtos apresentam vantagens em relação às carnes e aos leites de origem animal.
Juntos, eles assinam o artigo “Perspectiva: Alternativas de carne e laticínios à base de soja, apesar da classificação como alimentos ultraprocessados, oferecem nutrição de alta qualidade no mesmo nível de alimentos de origem animal não processados ou minimamente processados” (em tradução livre), publicado no final de março na revista Advances in Nutrition, da Universidade de Oxford.
Dois dos cinco autores têm ligação direta com corporações da produção de soja. Os outros três receberam financiamento ou são funcionários de empresas privadas, instituições que se apresentam como científicas, mas servem a interesses do poder corporativo. Está na jogada o velho e conhecido International Life Sciences Institute, o ILSI. Um caldo de conflitos de interesses com temperos bem marcantes.
Confira quem é quem:
Cara a cara do conflito de interesses
Diretor executivo do Instituto de Nutrição de Soja (SNI), uma empresa bancada pelas indústrias envolvidas na cadeia produtiva da soja para a produção de pesquisa sobre o assunto. O instituto recebe financiamento do United Soybean Board e das corporações: Danone, Kellog’s, Impossible Foods, ADM, Herbalife, entre outras.
Foi financiado diretamente pela Quaker, Barilla, Unilever, Nestlé, General Mills, entre muitas outras. Ele é do Comitê Consultivo Científico do Instituto de Nutrição de Soja (SNI) e atuou no Comitê Técnico de Carboidratos do ILSI América do Norte.
É funcionária da Cargill, que tem entre suas atividades a produção e o processamento de soja.
É funcionária da Medifast Inc., uma empresa de “nutrição e controle de peso”, que usa proteína de soja em muitos de seus produtos
É um assessor do Instituto de Nutrição de Soja (SNI) e, também, membro do Conselho de Curadores do ILSI América do Norte.
Por meio de uma revisão bibliográfica, a perspectiva apresentada pelos autores questiona a atual classificação, que parte do grau de processamento da qual deriva a recomendação de se evitar o consumo de ultraprocessados. E foram categóricos ao afirmar que “o sistema de classificação NOVA é excessivamente simplista e de pouca utilidade para avaliar os verdadeiros atributos nutricionais desses alimentos”.
Os autores defendem a ideia de que o processamento é benéfico para garantir a qualidade e a segurança dos alimentos, que podem contar com o acréscimo de vitaminas e minerais. Também atribuem às indústrias a garantia de alimentos suficientes para a população estadunidense. “Em outras palavras, o processamento pode tornar os alimentos mais saudáveis”, concluem.
Acontece que, obviamente, não existe na natureza “carne” ou “leite” de soja. Para que esses produtos possam assim ser chamados, um processo industrial é necessário para fazer a mediação entre as monoculturas e as prateleiras do supermercado. Para que a soja vire um leite que ficará armazenado numa caixinha parada durante meses em galpões, transportes e mercados, ela precisa de estabilizantes, emulsificantes, conservantes, além de açúcares e corantes. É no mínimo complicado cravar que não devem ser considerados produtos ultraprocessados.
O ultra-ataque das indústrias
As tentativas de descrédito à classificação NOVA não são novidade. A teoria que aposenta a antiga pirâmide alimentar e coloca o grau de processamento no centro do debate foi a base fundamental para a elaboração do Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado pelo Ministério da Saúde em 2014.
De lá para cá, foram várias as investidas da indústria para que o Guia fosse revisado. Em 2020, como mostrou O Joio e O Trigo, o Ministério da Pecuária, Agricultura e Abastecimento (Mapa) publicou uma nota técnica direcionada ao Ministério da Saúde, responsável pela revisão do documento, dizendo que “a classificação NOVA utilizada é confusa, incoerente e prejudica a implementação de diretrizes adequadas para promover a alimentação adequada e saudável para a população brasileira”.
À época, corporações como Coca-Cola, Mondeléz e Nestlé engrossaram o coro. Algo parecido com o que fizeram os autores do artigo, que negam a classificação dos ultraprocessados à base de soja. “Advertências contra o consumo desses produtos simplesmente porque são classificados como ultraprocessados são injustificadas e podem prejudicar a aceitação da sociedade a dietas à base de plantas, impedindo assim que as vantagens relacionadas à saúde e ao meio ambiente sejam alcançadas”, afirmam.
Lembremos que, com a NOVA, os grupos de alimentos deixaram de ser divididos de acordo com suas características nutricionais e passaram a ser categorizados de acordo com o nível de processamento:
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Não custa lembrar
O artigo lambuzado de conflitos de interesses encontra um cenário bastante oportuno para questionar a classificação desses produtos, uma vez que o consumo de animais e de seus derivados vêm sendo repensado, por razões muito válidas, aliás. Mas a adoção de uma dieta que deixa de explorar outra espécie e que continua com premissas arcaicas de acumulação não parece ser a solução mais razoável.
A publicidade e o marketing sobre os produtos vegetais, tal qual funciona com os ultraprocessados no geral, escondem as corporações e os fundos de investimentos bilionários que dominam esse mercado em ascensão. Não parece plausível fazer uma troca por produtos de empresas que, no fim das contas, lucram com os dois mercados: o de animais e o de plantas. A apropriação da luta antiespecista, que considera todas as vidas dignas de respeito e empatia, por corporações como Cargill, ADM e Unilever, é um movimento sorrateiro que usa a ciência de fachada como vitrine publicitária. É o famoso ditado: “Quem paga a banda escolhe a música”.