Conflito entre poderes e as dores da batalha sem vitoriosos

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Por Luiz Guilherme Conci, Justificando – 

A relação entre os poderes do Estado suporta dores, ressentimentos, equívocos, incompreensões e outros. Mas não podemos acreditar que ela tolera toda e qualquer decisão de membros dos poderes constituídos. A preservação dos seus próprios espaços constitucionalmente definidos está entre os deveres constitucionais mais nobres que toda e qualquer autoridade pública deve buscar na incessante tarefa de concretizar a Constituição.




A interpretação da Constituição, assim, não é uma atividade meramente gramatical. Fora assim, o mero alfabetizado poderia ser tido tão competente quanto o mais sábio dos juristas. Significa isso dizer que o mero voluntarismo, a interpretação meramente literal dos textos jurídicos ou a assunção, por parte de ator político, da função de arauto da moralidade, faz da atividade hermenêutica uma arma contra a sanidade da Constituição. A tão conhecida lição de Konrad Hesse, no seu “A força normativa da Constituição”, lição essa de leitura exigida para todo e qualquer um que pense tal atividade, nos leva a entender que a interpretação da Constituição tem, entre as suas exigências, aquela de que a decisão jurídica – e a judicial está entre estas – não pode gerar a dissolução da Constituição, é dizer, o desmoronamento das mais altas normas jurídicas que conhecemos não pode decorrer de interpretações jurídicas, quaisquer que sejam elas, pois tal resultado é, per se, um erro.

Temos visto, nos últimos dias, o contrário. O Presidente do Senado Federal, em franco atentando contra o direito, não recebe oficial de justiça, foge tal qual o devedor de cantina de bairro. A mesa do Senado Federal decide descumprir ordem do Supremo Tribunal Federal, sem qualquer fundamento razoável, pois o argumento de que a decisão cautelar tomada pelo Ministro Marco Aurélio dependeria de referendo do plenário do STF é, no plano jurídico, de uma fragilidade atroz. Tudo isso a enfraquecer o sentimento popular de cumprimento da Constituição pois, se as mais altas autoridades o fazem, avança o sentimento de autonomia quanto ao direito, de “cada um por si”, ou de que só se deve cumprir decisões que sejam favoráveis. Como se a irrestrita resistência houvesse se tornado um direito fundamental.

Fora somente esse o problema, teríamos mais críticas à representação popular nos parlamentos, à ausência de estofo moral de parlamentares e todos esses argumentos que estamos cansados de esgrimir desde há muito.

Todavia, a origem de tais ações plenamente inconstitucionais deriva, a meu ver, de uma decisão judicial também inconstitucional. Em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (402), a pedido do autor, concedeu o ministro Relator, Marco Aurélio de Mello, cautelar para afastar o presidente do Senado Federal de suas funções de chefe da casa alta do parlamento, mantendo-o com mandato de parlamentar eleito Senado da República desde as Alagoas. Presidente do Senado, não. Senador da República, sim.

O entendimento do relator, a meu ver um dos ministros mais respeitados do STF, vale dizer, avançou o sinal e o fez porque não somente, por cautela, e não por dever, deveria ter ouvido o plenário da casa, mas porque deu interpretação à Constituição excessivamente restritiva dos direitos do Presidente do Senado, alcançando, como resultado, situação bastante incompreensível. Repito, autorizar cautelarmente o afastamento não é contra a lei. Isso está no âmago das decisões cautelares tomadas monocraticamente. Aliás, no STF, decisões monocráticas são a regra.

Vejamos.

Discute-se se autoridade – no caso o Presidente do Senado Federal – que PODE vir a suceder o Presidente da República deve cumprir os requisitos exigidos daquele que se pretende fazer Presidente da República, ou seja, não estar a ser investigado, na qualidade de réu, em ação penal.

Sobre as exigências daquele que deseja ocupar a Presidência da República está, sim, tal excludente: não ser réu em ação penal. Todavia, vale salientar tem o cargo de Presidente da República, por outro lado, as suas próprias proteções constitucionais. Aquele que ocupa tal cargo não poder responder a ação por fatos anteriores ao exercício do cargo;  ação penal contra si só poder correr após decisão da Câmara dos Deputados, autorizando-a, para, somente aí, caber a tramitação de processo penal e; seu afastamento será por, no máximo, 180(cento e oitenta) dias.

Vê-se que há um arcabouço de exigências, por um lado, e de escudos, por outro, a proteger o cargo e a sua importância, e não a pessoa, por óbvio. Estamos falando de uma autoridade pública que não exerce somente a chefia do Governo Federal. Também é Chefe de Estado.

No caso concreto, de afastamento do presidente do Senado Federal, nenhuma dessas proteções está presente. E por óbvio, não poderia estar, pois dizem respeito, unicamente, ao cargo de Presidente da República.  Estamos falando, somente, do exercício do referido cargo e não de outro da República.

Não faria sentido, outrossim, que se estendesse exigências para o exercício de um cargo (Presidente da República) para outro (Presidente do Senado Federal). A interpretação restritiva é uma exigência em tais casos. Todavia, outra exigência mais central é a racionalidade das decisões. Essa é uma exigência civilizatória. E estamos falando em direitos e a exigência de proporcionalidade que a decisão jurídica – e a judicial como uma delas – deve ostentar. E não foi o que ocorreu.

O exercício do cargo de Presidente do Senado Federal diz respeito, como o próprio nome diz, à chefia mais alta casa do Parlamento. Aqui está o núcleo da função exercida. E deriva de uma escolha pública feita pelos pares, representantes dos estados naquela casa. A assunção da Presidência da República está entre as atividades atípicas do Presidente do Senado Federal, é excepcional e, mais importante ainda, não ocorre, nesse momento, situação que demonstre que isso está a acontecer proximamente com o atual mandatário que chefia os representantes dos estados.

Ainda que estivesse, e se aplicasse a restrição constitucionalmente existente para a assunção do mais alto cargo da Republica (Presidente), de não ser réu em ação penal com denúncia recebida pelo STF, a irracionalidade está em haver outras autoridades em tal linha sucessória. Lembremos que após o Vice-Presidente – que hoje não temos em nosso quadro institucional, temos ainda o Presidente da Câmara dos Deputados e, aí sim, o Presidente do Senado Federal. Após esse, o Presidente do STF.

Digamos que, eventualmente, se abrisse a possibilidade de que o Presidente do Senado Federal assumir a Presidência da República. Por óbvio que ele não cumpriria os requisitos para o exercício de tal encargo, pois, como dito, réu em ação penal recebida pelo STF. Mas, afirmar que tais requisitos importam no afastamento da função de Presidente do Senado Federal é ampliar, de modo desproporcional, exigências constitucionais não previstas, e criadas a partir da atividade hermenêutica do STF.

 

Dizer que o exercício da Presidência do Senado Federal exige que se cumpra os mesmos requisitos da Presidência da República é descumprir a Constituição. É afirmar mais exigências que a própria Constituição faz e não apontar as mesmas proteções que a mesma Constituição também faz para aquele que exerce a Presidência da República.

 

É nesse ponto que está o equívoco interpretativo. Afastar o Presidente do Senado Federal das suas funções típicas porque não cumpre exigências para o exercício de outro cargo é desarrazoado, pois não carrega racionalidade. As exigências somente se aplicariam caso se abrisse a possibilidade de assunção da Presidência da República, que é o cargo sobre o qual pesam tais obrigações constitucionais.

A manutenção do Presidente do Senado Federal em seu cargo é uma decisão que deriva, racionalmente, a partir do que afirmado. Não nutro qualquer simpatia pelo atual ocupante. Seu nome me lembra de tempos em que algumas oligarquias regionais faziam as vezes do Estado, ainda no Império, exercia poder de polícia, abusavam do seu poder, rompendo a igualdade em pleitos eleitorais, dentre outros. Mas a proteção da Constituição deve prevalecer em um caso como esse, como em qualquer outro caso.

A solução alcançada pelo STF, ontem, foi a correta. Isso não significa que houve vencedores no plano político. O STF sai com a imagem arranhada por manifestações despropositadas proferidas por um ministro sobre outro; por dar à sociedade a sensação de que cedeu à pressão política do Senado e de seu presidente; de que joga o jogo da política e se amesquinha cada vez mais. O Senado Federal mostra à essa mesma sociedade que não cumpre decisões judiciais; que é um centro de interesses privados em dissintonia com o as suas mais altas funções; que seu presidente pode tudo. O presidente do Senado mais uma vez mostra que não tem condições morais para ocupar a cadeira que ocupa.

Mas, pior que isso, fica a sensação de que a Constituição é uma massa amorfa moldada por quem quer que tenha o poder de interpretá-la autenticamente, que decida a partir das normas jurídicas que dela decorrem. Triste para nós, constitucionalistas, ver esse momento sem poder, minimamente, encontrar racionalidade nas decisões proferidas por quem tem poder para dar sentido ao texto constitucional

Luiz Guilherme Arcaro Conci é professor da Faculdade de Direito da PUC-SP, onde coordena o curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Constitucional. Professor Titular de Ciência Política e Teoria do Estado da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo – Autarquia Municipal. Professor Convidado do Mestrado em Direito da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.  Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP, com estágio pós-doutoral na Universidade Complutense de Madri (2013-2014). Foi Presidente da Coordenação do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (2013-2015). É Advogado e Consultor Jurídico.

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