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Relatório da Comissão Pastoral da Terra aponta tensão crescente com invasões e grilagem e alerta para ameaça aos povos indígenas
Por Oscar Valporto | ODS 10, ODS 16 • Publicada em 31 de maio de 2021 – 10:03 • Atualizada em 1 de junho de 2021 – 09:50
Relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) contabilizou um recorde de 2.054 ocorrências de conflitos no campo, envolvendo quase 1 milhão de pessoas. Foram registradas ainda, em plena pandemia de covid-19, 1.576 ocorrências de conflitos por terra que envolveram 171.625 famílias brasileiras. Esses números são os maiores já registrados pelo Centro de Documentação da CPT – Dom Tomás Balduino (Cedoc). Em mais um triste recorde, em 2020, 81.225 famílias tiveram suas terras e territórios invadidos, maior número da série histórica registrada pela CPT desse tipo de violência.
Jornalista indígena relata violência contra as mulheres do campo e da floresta
O documento de 248 páginas aponta que a pandemia agravou o cenário de conflitos fundiários. “Se no contexto da vida urbana, a covid-19
representou em elevado grau a deterioração da vida, com adoecimento, morte e miséria, para as populações do campo, os desdobramentos
se notam ainda mais severos, uma vez que a pandemia foi instrumentalizada pelos antípodas das comunidades camponesas e tradicionais para potencializar toda a sorte de ataques contra terras e territórios”, destaca o Conflitos no Campo Brasil 2020.
Os dados gerais de conflitos no campo mostram que o número de ocorrências passou de 1.903 em 2019, para 2.054 em 2020, um aumento de 8%. Esse é o maior número de ocorrências de conflitos no campo já registrado pela CPT, desde 1985. O número de pessoas envolvidas nesses conflitos passou de 898.635, em 2019, para 914.144, em 2020, um aumento de quase 2%. “O medo e a morte, sempre presentes na vida das periferias e na luta dos povos do campo, agora se pulverizam e se alastram a passos gigantes”, aponta o documento da CPT em sua apresentação.
Em artigo para o relatório, a professora Patrícia Chaves, do Laboratório de Geografia da Universidade Federal do Amapá (Unifap), revela que entre as categorias que mais provocaram conflitos nos últimos dez anos estão grileiros, madeireiros, fazendeiros e empresários. “A gestão de Jair Bolsonaro potencializou a ação dos agressores, ainda que considerado o curto período de dois anos”. De acordo com a professora e geógrafa, durante os seis anos da gestão Dilma Rousseff, “fazendeiro”, a categoria que mais provocou conflitos, figurou, na média, em 322 conflitos anuais. Com Bolsonaro, o número subiu para 392, um crescimento de 22%. “A cifra mais expressiva, contudo, foi do próprio “governo federal”, que à época de Dilma foi polo agressor em 45 conflitos por ano e, na administração Bolsonaro, em 311, um crescimento exponencial de 591%”, aponta.
O Conflitos no Campos Brasil 2020 aponta ainda que o contexto político, somado ao grave momento de pandemia, potencializou a fragilização a que os trabalhadores estão expostos. A CPT registrou o aumento dos conflitos trabalhistas, 96 ocorrências, o maior número em 6 anos. 1.104 trabalhadores e trabalhadoras estavam nessas ocorrências, um aumento de 25% em relação ao ano de 2019. “Os elevados cortes orçamentários em áreas prioritárias e o sucateamento da auditoria do trabalho têm colocado em xeque todas as políticas preventivas e repressivas de combate ao trabalho escravo adotadas pelo Estado brasileiro, até então, uma referência em âmbito externo no enfrentamento à escravidão contemporânea”, afirma, em artigo, Tiago Muniz Cavalcanti, procurador do Trabalho e ex-coordenador nacional de erradicação do trabalho escravo do Ministério Publico do Trabalho.
Violência contra Indígenas e seus territórios
Não é surpresa para quem acompanha a ofensiva de grileiros, madeireiros e garimpeiros, incentivados pela omissão do governo: no ano de 2020, entre os 18 assassinatos registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), em conflitos no campo, sete foram de indígenas, 39% das vítimas. Entre as 35 pessoas que sofreram tentativas de assassinato ou homicídio, 12 eram indígenas, 34% das vítimas. Em relação a ameaças de morte, entre as 159 pessoas ameaçadas, 25 são indígenas, 16% das vítimas.
Os registros da CPT mostram a gravidade do ataque também contra os territórios originários, especialmente a partir de 2019: modalidades de violência, como “invasão” e “grilagem”, registraram crescimento exponencial. Em 2020, das 81.225 famílias vítimas de invasões, 58.327 são indígenas (71,8%). Em 2019, essa porcentagem foi de 66,5% (26.621) e, em 2018, de 50,1% (14.757). O incremento das famílias indígenas impactadas, entre 2018 e 2020, foi de 295%. O número total de famílias indígenas vítimas de invasões passou de 40.042 em 2019 para 81.225 em 2020 = aumento de 102,85%.
Com relação à grilagem, os números de 2020 são igualmente superlativos: 7.252 famílias indígenas entre um total de 19.489 (37,2%), vítimas de conflito por grilagem; em 2018, os indígenas somaram 1.381 de 15.037 famílias (9,2%). Em análise na publicação da CPT, o coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Eloy Terena, argumenta que os dados revelam as lideranças indígenas à mercê de uma violência engendrada a partir da postura governamental.
“Estamos sob a gestão do presidente Jair Bolsonaro, primeiro presidente eleito declaradamente contrário às demarcações de terras indígenas. Desde o primeiro dia de seu mandato, já no ato de posse, apresentou ao Congresso Nacional a Medida Provisória 8702, que retirava a atribuição de demarcação de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) e a transferia para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), além de retirar o órgão indigenista de Estado da tutela do Ministério da Justiça”, afirma o advogado e pesquisador Indígena.
Eloy Terena alerta que instrução normativa da Funai facilita a regularização de ocupações em territórios indígenas. “Passa a liberar para a compra, venda e ocupação todas as terras em estudo, as delimitadas pela Funai, as terras declaradas pelo Ministério da Justiça, além das áreas sob portarias de restrição de uso e aquelas interditadas para estudo sobre a presença de indígenas isolados”, denuncia o coordenador jurídico da Apib e da Coiab, lembrando que há, pelo menos, 246 terras indígenas (TI) ainda pendentes de homologação. “Essas normas potencializam o conflito, o desmatamento e os incêndios em terras indígenas”, enfatiza.
Em 2020, como ressalta Eloy Terena, quase 800 km² de floresta foram derrubados nos três primeiros meses, um aumento de 51% em relação ao mesmo período de 2019. Um terço da devastação ocorreu em terras públicas, alvo preferencial dos grileiros. “É preciso destacar que, além dos problemas estruturais causados pela não demarcação de terras indígenas e pela ausência de proteção naquelas já demarcadas, os povos e comunidades indígenas são assolados pelo avanço da pandemia da covid-19″, afirma.
O advogado e pesquisador indígena lembra ainda que, em fevereiro, com a eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, presidente apresentou um pacote de pautas prioritárias, entre elas, o PL 191/20, que regulamenta a mineração em territórios indígenas. “Trata-se de abrir as terras indígenas para exploração minerária”.
Terra em transe
O Cedoc Dom Tomás Balduíno sistematizou, também, 1.576 ocorrências de conflitos por terra em 2020, o maior número desde 1985, quando o relatório começou a ser publicado. A escala da tensão no campo é evidente: este dado é 25% superior ao registrado em 2019 e 57,6% maior do que o de 2018. Esses conflitos envolveram 171.625 famílias. A CPT confirma ainda as ameaças sofridas pelos povos indígenas no Brasil nesse tipo de conflito: foram alarmantes 656 ocorrências (41,6% do total), envolvendo 96.931 famílias (56,5%).
O aumento considerável da violência no campo pode ser visto na análise dos dados sobre ocorrências de conflitos por terra de 1985 a 2020. “O quadro de agravamento dos conflitos fica mais evidente quando comparadas as porcentagens dos conflitos: se entre 1985 e 2009 a média anual das ocorrências era quase sempre abaixo de 3,0% do total, a partir de 2010, essa porcentagem foi sempre superior a 3,0%, tendo aumentado consideravelmente em 2019 (5,78% do total) e em 2020 (7,23%). O número de conflitos por dia, que tinha sido de 2,74 por dia em 2018, passou a 3,45 em 2019 e 4,31 em 2020”, destaca o relatório da CPT.
Autores de artigo para o documento sobre conflitos de terra, os advogados Girolamo Domenico Treccani, José Heder Benatti, Aianny Naiara Gomes Monteiro lembram que a CPT sistematiza “ocorrências”, isto é, violências documentadas num determinado momento histórico. “O que se percebe é que muitos conflitos perduram ao longo do tempo, em alguns casos por anos ou, até, por décadas, sobretudo quando envolvem populações tradicionais”. No caso das famílias cujos territórios foram invadidos, houve um aumento de 102,85% de 2019 para 2020. 81.225 famílias tiveram suas terras e territórios invadidos em 2020. É o maior número desse tipo de violência já registrado pela CPT. 58.327 dessas famílias são de indígenas, ou seja, 71,8%.
O artigo lembram ainda a MP da Grilagem, enviada pelo governo mas não votada, e os mais recentes projetos de lei, na Câmara e no Senado, com o mesmo objetivo de alterar regras para facilitar regularização fundiária em áreas federais. “Em comum, essas propostas, incentivam a continuidade de ocupação de terras públicas e o desmatamento”, afirmam os autores, lembrando que, paralelamente a essas iniciativas, os estados vêm alinhando suas legislações fundiárias, “adotando cada vez mais um caráter privatista, sob o argumento da desburocratização dos procedimentos de regularização fundiária.
Massacre em conflito pela água
De acordo com a CPT, o número de ocorrências de conflitos pela água em 2020 teve uma redução de cerca de 30% em relação ao ano anterior, marcado por dois eventos de grande impacto em 2019: o derramamento de óleo no litoral brasileiro, em especial na Região Nordeste, e o desastre provocado pelo rompimento da barragem B1 da mineradora Vale S.A, em Brumadinho (MG). As duas tragédias desdobraram-se em conflitos pelo uso da água.
Entretanto, em 2020, foram registrados, pelo menos, quatro assassinatos nesse tipo de conflito – o maior número de mortes em conflitos por água já registrados pela CPT, desde que ela passou a fazer esse registro em 2002. O Massacre do Rio Abacaxis, como ficou conhecido o múltiplo homicídio, aconteceu em agosto de 2020: Josimar Moraes Lopes, indígena Munduruku, e três ribeirinhos foram assassinados na região do Rio Abacaxis, cerca de 150 km ao sul de Manaus. Mais seis pessoas foram mortas na região, inclusive dois PMs: a polícia investia relação entre os crimes.
Agentes da CPT Amazonas relataram se tratar de uma situação complexa, que envolve camponeses e indígenas, de um lado, pescadores ilegais e policiais do outro, e ainda um terceiro grupo formado por traficantes de drogas. Conforme o Ministério Público Federal (MPF), desde o ano de 2007 os indígenas denunciam a ocorrência de conflitos na região, causados pelo turismo de pesca esportiva, o garimpo irregular, o tráfico de drogas e o uso de armas de fogo. Nesse contexto, as comunidades locais são ameaçadas.
Segundo os dados do Cedoc, os conflitos pela água na última década apresentaram uma curva ascendente, aumentando mais de sete vezes, com agravamento a partir de 2018. O número de ocorrências passou de 89, em 2011, para 502, em 2019, um recorde de registros. Essa curva ascendente também é registrada se analisados os dados de famílias envolvidas em conflitos pela água: em 2011, foram contabilizadas 28.057 famílias envolvidas em conflitos; em 2019, o número triplicou, chegando 79.381 famílias.