Considerações sobre a Senhora C, senhora do Samba e da Vida

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E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, conversa com a gente sobre a Senhora C, uma senhora cantora e pesquisadora de música e da vida que se despediu destes palcos terrenos para se encantar.

No texto, César põe na roda um certo almofadinha, o insensível MR Buster, retratado por Vinícius de Moraes (Veja no final).




“Topei com ela algumas vezes em Paquetá. Sempre preferi deixá-la na dela, mesmo correndo o risco de ser indelicado. Sabe aquele gesto de fingir que não viu alguém importante? Afinal, era ela a senhora C, a do samba. Mas há de se respeitar a intimidade das pessoas. É difícil pensar em algo tão chato quanto bancar a tiete. Só mesmo bancar a tiete esclarecida, tiete intelectual. Faz favor, tiete esclarecida, vai-se banhar no Tietê, pra pegar um eczema.


Em uma ocasião topei com ela numa festa de São Cosme e Damião em Paquetá. Lá estava a senhora C sem a menor cerimônia a tomar um banho de borracha de mangueira, feliz que nem criança. Ela fez mais do que certo, um calor do cacete, pô, naquele domingo. Os donos do mundo não sabem o que é tomar banho de mangueira. Vai ver eles não sabem nem o que é uma mangueira, nem a de esguicho nem a que dá sombras, mangas e abrigos de morcegos.


Vocês podem comprar tudo, podem por tudo abaixo, Mr. Buster. Mas não podem comprar gente como a senhora C. Ela só olhava pro cabra, acendia um Pall-Mall no outro, e mandava o Três-Com-Goma se escafeder em diversas línguas, entre elas o italiano, a língua do pê e as línguas dos malandros compositores de mão cheia. Aliás, de Três-com-Goma é como a gente chama gente como você, Mr. Buster, muitas vezes pelas costas.


Show é gaiola, talvez fosse o que ela pensasse a respeito do que foi seu ganha-pão. É, Mr. Buster, música popular, S-A-M-B-A. não é mole, não, mas se tem que garantir o leite das crianças, a educação das crianças, Então lá ia ela de shows. Com vocês, a senhora C.


A senhora C tinha um pendor pela pesquisa, algo que todos da família têm. Deve ser estranho à beça ter um pai escritor daqueles. Deve ser difícil, sufocante, tipo a angústia de influência do Harold Bloom. O senhor conhece o Harold Bloom, Mr. Buster?

Por isso a gente precisa ser a gente mesmo. Às favas todos os rótulos, o que eu quero é liberdade, que é uma forma de ouvir um samba de Padeirinho no rádio assim do nada só girando o dial. Pura força do acaso. Essa aqui é do santo.


Me diga, Mr. Buster: quem vai ouvir aquelas filas K-7 com todas aquelas preciosidades? Quem é que vai organizar o acervo e a cerva? Quem é que vai dar de comer aos gatos? Quem é que vai podar as árvores? Quem é que vai desempacotar os cigarros que estão no armário da cozinha?

Mr. Buster, não banque a Madalena arrependida, o senhor sempre foi a favor da modernidade. Um dos efeitos dessa modernização desavergonhada é destratar o passado, é evitar a responsabilidade pelos desastres ambientais que cometeram, que cometem, que cometerão.


Outra vez estávamos numa casa que vira restaurante, uma que tem uma piscina na frente, mais por ali. Me desculpa, eu não sou daqui. Era tipo um almoço com música ao vivo. Um senhor tocava uma guitarra bacana desfilando sucessos de outros tempos. “Lay,Lady,Lay”, grande hit do Dylan de se ouvir na rádio AM era umas das coisas que ele tocava.

Fomos lá cumprimentar a senhora C. Eu, para variar, absolutamente acanhado, falei pouco, uns salamaleques. Afinal, não conheço a obra dela, somente uns pedaços, umas partes soltas. Como falar de alguém dessa envergadura sendo um absoluto ignorante?


O senhor é ignorante, Mr. Buster?
Cá entre nós, isto é muito sério. Pois a nossa memória musical está em risco. O mínimo que se pode fazer é ouvi-la. Não só sua obra mas aquilo que ela dizia não dizendo, o que há nas entrelinhas. Isso é pesquisa, Mr. Buster.


Sentirei falta do seu humor, de sua cerveja, de seu despojamento como forma de se comportar diante da vida, de seu caminhar e de andar de bicicleta. Isto porque onde ela morava a bicicleta se torna um meio de transporte de fato.

Não precisa a Flywill desses tempos modernos. Bicicleta feita de carbono é o raio que o parta. Pode ser uma Barraforte ou outra ferrugem qualquer com corrente, guidão, pedaleira e pneus. Uma buzininha também serve. É melhor que drone.


Por derradeiro, que meu samba é curto, uma vez eu a vi de calças jeans e sapato fechado e tal indo em direção à Estação das Barcas. Ela disse para o senhor M que iria a um enterro no Rio. Fazia um dia de sol ameno. As águas sujas da Baía espelhavam um tantinho de luz amarela. Faiscavam. Eu a vi e a deixei ir como sempre fiz. Não lhe disse o quanto a admirava por ela ser do jeito que era: amiga do senhor M e de todos da ilha.

A vida não é uma bosta, Mr. Buster. O Fluminense empatou. Amanhã eu continuo a beber um pouco por ela.”

Vinicius de Moraes chama na chincha um certo Mr Buster

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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