E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos conta um continho de Natal. Conto que é da conta de todos nós, que tivemos um infância bem contada.
“Cada um tem uma história de Natal para chamar de sua. Eu escrevi essas aí embaixo, puxando um pouco da memória e deixando que a fantasia completasse o serviço.
Não quis escrever mensagens edificantes nem tratar do espírito do Natal que modifica as pessoas, até mesmo as mais rabugentas como o senhor Scrooge, personagen de Charles Dickens em “A Christmas Carol” (“Um conto de Natal”, em português).
Fiz o que pude para ser claro. Entretanto, nunca se sabe direito como o respeitável público irá receber e interpretar as palavras de um texto. Portanto, se o texto lido suscitar lembranças, dou-me por satisfeito. Afinal a concorrência é grande e a caravana da Coca-Cola está prestes a passar na sua rua, se é que já não passou.
No dia em que segurei a sua mão
O menino apertou a mão do pai quando viu o homem de longa barba apanhar de soldados romanos, os temidos centuriões. Era uma encenação modesta da Paixão de Cristo: ocorria em uma igreja de subúrbio. E, mesmo pequeno, o menino não deixou de notar que os porretes não passavam de buchas vegetais.
Apesar disso, o impacto da cena foi tão decisivo que o menino, apesar de crescido, não deixou mais de interligar o nascimento e a morte do Salvador.
Se há quatro festas, duas são: Páscoa e Natal. Correndo e dançando por fora, Carnaval e São João.
Exemplo de força do teatro, mas também de como atua a ideologia. De todo o ocorrido, o homem que foi menino recorda mais vivamente: segurou com força a mão do pai.
Você sabe onde fica?
Era comum a família subir a serra para passar o Natal em Petropólis, na casa do tio Celso. Pegava-se um ônibus na Rodoviária Novo Rio até Petropólis. Do centro da cidade, pegava-se outra condução para saltar invariavelmente no ponto da Concessionária da Alfa Romeo, que vendia Fiats além dos Alfas.
Em um desses Natais na Serra, apareceu um Papai Noel a distribuir presentes. O menino não se entusiasmou o esperado, talvez porque já tivesse crescido por dentro.
Passaram-se anos, e a cidade de Petrópolis não lhe saiu da cabeça. Volta e meia ele, homem feito, atazana o roteiro de férias da família com desejos de retorno ao mesmo lugar, isto é, a Petropólis.
Quando está de bom humor, a mulher ri deste apego inconfundível que o marido tem por um momento do passado. Ele, por sua vez, jura que não quer viver passado coisa nenhuma enquanto busca no Google Maps pistas sobre o possível endereço da tal concessionária. Porque, dali ele sabe de caminho o caminho da casa do tio Celso.
Por onde andará a Magnólia?
Ela sempre contava a mesma história nesta época do ano. Criança pobre, ela sonhava em ganhar no Natal um presentinho, um mísero presentinho que fosse. Uma boneca, talvez. Nunca ganhou nada, o que a marcou para sempre.
Quando lhe veio a neta, ela tratou de comprar bonecas e mais bonecas, ursinhos de pelúcia, jogos de tabuleiro, o que estivesse na cartinha dentro do pé de meia pendurado na janela.
Ela também tratou de se vestir de Mamãe Noel. O figurino era tradicional, apesar de se perceber facilmente que ela usava, em vez de cinto, cartucheira de cangaceiro de bando de Lampião.
Enquanto teve saúde, ela não faltou à missa de Natal da Paróquia. Ia com seus passos lentos, com seu corpo frágil de ave à mercê de chuva de vento. Ia. Ia. Ia. Se hoje ela não se preocupa mais com a preparação da festa ou coisas do tipo, é porque para ela nada disso é mais importante, esqueceu-se.
“Magnólia, Magnólia”, ela chama por uma amiga da infância, de internato, por alguém que conheceu de fato ou a quem os luminosos da memória tratam de produzir.
O futuro de uma ilusão
Ele não acreditava mais em Deus. Leitor tardio de Freud, achava a religião uma ilusão, algo em que a humanidade se sustentava para não sucumbir ao peso da existência.
Entretanto, em sua prática cotidiana, ele foi fiel aos princípios cristãos que aprendeu nas aulas de catecismo. Ajudou sempre que pôde aos necessitados, foi respeitoso com os que não tinham privilégio nenhum, recebeu em sua casa gente de origem duvidosa ou de nenhuma origem, cuidou dos enfermos até que eles pudessem ficar de pé, preparados para novos tombos.
No Natal, ele era o responsável pela preparação dos pratos. E sempre deixava queimar os pasteis.
Quando renasceu, um porteiro do prédio onde ele morava disse algo assim: “Ele era um dos poucos que falavam com a gente”.”
Imagem: Elifas Andreato
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.