Continua UPP: Unidade de Pancada em Pobre

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Luiz Antonio Simas no Facebook –  

Sobre o cacete cantando no Rio de Janeiro ontem, me permitam recorrer a quem me guia: a História. A ocupação inicial dos morros do Rio de Janeiro, conforme as amizades sabem, remonta aos fins do século XIX e início do século XX. O contexto do período – comecinho da República – é marcado por duas ideias que norteiam a atuação do poder público em relação ao Rio e seus habitantes: civilizar, interferindo no espaço urbano e nos hábitos cotidianos; higienizar, através da assepsia proporcionada pela vacina.




O ato de civilizar era visto como uma tentativa de impor à cidade padrões urbanos e comportamentais similares às capitais européias, especialmente Paris. A reorganização do espaço urbano teve, naquele contexto, o objetivo de consolidar a inserção do Brasil no modelo capitalista internacional, facilitar a circulação de mercadorias [inviabilizada pelas características coloniais da região central, com ruas estreitas que dificultavam a ligação com a zona portuária] e construir espaços simbólicos que afirmassem os valores de uma elite cosmopolita contra uma cidade de pretos e portugueses pobres. Era o sonho da Belle Époque tropical.

Havia, portanto, um obstáculo a ser removido para a concretização da Cidade Maravilhosa: os pobres que habitavam as ruas centrais da cidade e moravam em habitações coletivas, como cortiços e casas de cômodos; descendentes de escravos, mestiços, imigrantes portugueses… A solução encontrada pelo poder público foi simples e impactante. Começou o “bota-abaixo”, com o sugestivo mote de propaganda “O Rio civiliza-se”. Resultado do furdunço: mais de setecentas habitações coletivas demolidas em curto espaço de tempo.

A reforma resolvia uma série de problemas e contradições da cidade e gerava uma indagação: o que fazer com os homens e mulheres que os governos definiam como “elementos das classes perigosas”, habitavam as regiões centrais e eram obstáculos à concretização da Paris tropical?

A relação das elites e do poder público com os pobres era paradoxal. Os “perigosos” maculavam, do ponto de vista da ocupação e reordenação do espaço urbano, o sonho da cidade moderna e cosmopolita. Ao mesmo tempo, falamos dos trabalhadores urbanos que sustentavam – ao realizar o trabalho braçal que as elites não cogitavam fazer – a viabilidade desse mesmo sonho: operários, empregadas domésticas, seguranças, porteiros, soldados, policiais, feirantes, jornaleiros, mecânicos, coveiros, floristas, caçadores de ratos, desentupidores de bueiros…

A população pobre, ao mesmo tempo repelida e necessária, tinha duas opções: morar nos subúrbios ou ocupar os morros centrais. A vantagem da ocupação dos morros, evidente para os dois lados, era a maior proximidade dos locais de trabalho Fica combinado assim: não tão perto que possam macular a cidade restaurada e higienizada, não tão longe que obriguem a madame a realizar os serviços domésticos que, poucas décadas antes, eram tarefas das mucamas de Sinhá.

A ocupação dos morros retrata, então, as contradições de uma cidade que se pretende moderna e cosmopolita e é, ao mesmo tempo, marcada pelo esteio ideológico de trezentos anos de trabalho escravo. Os séculos de cativeiro e chibata geraram, pelas bandas de cá, uma brutal desvalorização dos serviços manuais e dos seus praticantes.

Além da vacina, que promoveria a defesa dos corpos contra as epidemias, o outro braço de controle, este social, dos pobres na cidade modernizada seria a Polícia Militar do Rio de Janeiro. A corporação foi criada por D. João, no início do século XIX , em um contexto em que a revolução dos pretos do Haiti apavorava, pelo poder de inspirar movimentos similares, as elites do Brasil. A função original da polícia era, não nos enganemos com os discursos e documentos oficiais, basicamente a de defender a propriedade e as camadas dirigentes contra as “gentes perigosas e de cor”.

No contexto republicano, a incriminação da vadiagem, no Código Penal de 1890 e na Lei de Contravenções Penais de 1942, abriu espaço para a punição de quem vivia (cito a lei de 1942) na “ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que assegure meios bastantes para a subsistência” . Em suma: pobreza é crime e estamos conversados.

Feitas estas observações, vou insistir em um ponto: a necessidade de luta dos trabalhadores organizados contra a precarização do trabalho é urgente, mas é urgente também gritar contra a cotidiana espoliação de uma massa que está bem abaixo da precarização; a turma que nem greve para fazer tem; a mesma que não presta nem para existir, na visão gerencial que anda caracterizando nossos tempos de desencanto. São as “sobras-viventes” descartáveis que inviabilizam o sonho dourado da cidade-empresa, da assepsia social, do rebanho manso de trabalhadores braçais indo para o abatedouro em fila. A turma que lida com a polícia todos os dias.

Com esse caldo de cultura urbana que temos, o que é que se pode esperar da PM – braço armado do estado, que fique claro – em atos como o de ontem? Moderação? É mais fácil pedir moderação ao Conde Drácula dentro de um banco de sangue. A natureza do vampiro é chupar o sangue; a natureza da PM é descer o pau para garantir o status quo. Ela foi criada para isso. A PM é, historicamente, uma UPP permanente: Unidade de Pancada em Pobre/Preto. Eventualmente, a água sobe a ponto de molhar a bunda da classe média.

No mais, é seguir na gira. Ainda tem muita curimba pra ser puxada nessa macumba.

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