Ativistas denunciam abate e maus-tratos dos animais, cuja pele é exportada à China para produção de medicamento e cosméticos, sem comprovação científica; população de jumentos teve redução drástica
Por Adriana Amâncio, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Muitos dos locais de confinamento dos jumentos não respeitam as condições sanitárias, o que favorece a proliferação de zoonoses como o Morno, que tem 95% de letalidade
Não por acaso o cantor Luiz Gonzaga (1912-1989), consagrado como “Rei do Baião”, cantou; “… quer queira quer não, o jumento é nosso irmão…”. Os versos da canção “Apologia ao Jumento” dão uma ideia da relevância do animal para a região Nordeste. Em outro trecho da canção, ele justifica “ o maior desenvolvimentista da região… ajudou o homem na lida diária…”.
Para evitar que esse animal simbólico seja apenas uma lembrança na música de Gonzagão, uma coalização de ONGs e fóruns reunidos na Frente Nacional de Defesa dos Jumentos realizaram protestos em 15 capitais brasileiras, neste domingo, 30.
Eles chamam atenção para o sofrimento dos jumentos no Brasil, já sob ameaça de extinção, por causa da cadeia produtiva do eijiao (gelatina obtida da pele do animal). Além disso, eles cobram a aprovação do Projeto de Lei 2387 de 2022, que proíbe o abate de cavalos e jumentos para o comércio de carne para consumo e exportação.
Abate para exportação
Desde 2011, quando esses animais passaram a ser substituídos por motocicletas, nas áreas rurais, e vagarem em vias públicas, a população tem diminuído significativamente. Eles passaram a ser capturados, confinados em condições precárias e abatidos para terem o couro retirado e comercializado para a China.
Já no país asiático, é feita a extração de um tipo de colágeno da pele do animal, que é usado para a produção do eijao. Na medicina chinesa, esse produto, mesmo sem comprovação científica, é usado para auxiliar na circulação sanguínea, no tratamento da anemia e de doenças reprodutivas.
“É um gel retirado do tecido subcutâneo, que passou a ser usado no século 19, quando não tinha aprimoramento científico, portanto não está comprovada a sua eficácia. Ele pode ser consumido em cápsula, como parte de um produto de beleza ou como composto para alimentação humana”, explica a veterinária e diretora técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, Vânias Nunes.
Para se ter uma ideia, em 2011, a população de jumentos no Brasil era de 974.688. Em 2017, esse número tinha caído bem mais do que a metade, estava em 376.874. Apenas nos abatedouros sob responsabilidade do Serviço de Inspeção Federal do Estado da Bahia, em 2021, 78.694 jumentos foram mortos. Os dados são do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Eles são levados para os abatedouros, ficam confinados em péssimas condições, sem receber nenhum cuidado, sem alimento, sem água, adoecem, mas não recebem tratamento e, muitas vezes, morrem antes mesmo do abatimento
Vânia Nunes
Diretora do Fórum de Defesa e Proteção Animal
Segundo Vânia, a crueldade a que esses animais são submetidos começa no confinamento.“Eles são levados para os abatedouros, ficam confinados em péssimas condições, sem receber nenhum cuidado, sem alimento, sem água, adoecem, mas não recebem tratamento e, muitas vezes, morrem antes mesmo do abatimento”, explica.
Outro problema, segundo ela, é a falta de rastreabilidade e monitoramento desta atividade extrativista, especialmente no modo clandestino, o que faz com que não haja monitoramento sanitário.
“A gente passou a receber denúncias de caminhões que saíam, à noite, de diversos estados, levando jumentos para os abatedouros da Bahia. Nestes animais, foi diagnosticada uma doença chamada Mormo, uma zoonose altamente letal”, enfatiza. Com uma taxa de 95% de letalidade, essa doença depende de monitoramento rigoroso dos órgãos sanitários.
A ativista da causa animal e coordenadora do Fórum de Bem Estar Animal (Febemape), Yolanda Silva, órgão responsável pela organização da mobilização em Pernambuco, avalia que frear o abate dos jumentos é algo urgente.
“As pessoas que vivem deste comércio não investem na cadeia produtiva, pois o custo benefício é inviável, já que a gestação de um jumento dura um ano. Então, é preciso fazer algo para salvar esse animal, que é tão simbólico para o Nordeste”, defende.
Além de simbólico, a médica Vânia Nunes frisa que o jumento brasileiro é único. Ela revela que pesquisas recentes mostraram que geneticamente ele é diferente das demais variedades que existem em outras partes do país.
Disputa judicial
Em 2017, segundo a Frente Nacional de Defesa dos Jumentos, a estimativa era de que cerca de 100 mil jumentos estavam sendo abatidos por ano no Brasil. À época, havia pouco mais de 370 mil animais do tipo. Neste ritmo, agora, em 2023, não deveria haver mais um jumento vivo.
No entanto, Vânia avalia que a pandemia contribuiu para redução desses abates. “A proibição de aglomeração de pessoas fez com que os abatedouros reduzissem e, em seguida, paralisassem as atividades, poupando a vida de muitos jumentos”, explica.
Junto com isso, em dezembro de 2018, o Tribunal Regional Federal (TRF) concedeu uma liminar como resultado de uma ação civil pública instaurada após denúncias de maus tratos realizadas pela sociedade civil.
As denúncias foram apresentadas pela União Defensora dos Animais – Bicho Feliz, a Rede de Mobilização pela Causa Animal, do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, da SOS Animais de Rua e da Frente Nacional de Defesa dos Jumentos. Em alguns dos casos, cerca de 880 jumentos morreram de sede, fome e maus tratos.
Na ação, a União e o Governo da Bahia se tornaram réus. A decisão proibiu o abate nos três frigoríficos, que possuem autorização do Mapa para funcionar. Eles estão localizados nos municípios de Simões Filho, Itapetinga e Amargosa.
Em setembro de 2019, o TRF derrubou a liminar sob o argumento de que a decisão atrapalhava a economia pública e causava déficit na geração de emprego e renda. Desde então, os abates foram retomados.
Agricultora fala da importância do jumento
Para a agricultora Suzana Pereira, da Serra do Urubu, na área rural de Mata Grande, no sertão alagoano, o jumento tem papel essencial no acesso à água. “Ave, Maria! Nem sei o que seria de mim sem o meu jeguim (sic), como eu ia carregar 70 litros de água a cada viagem”, avalia.
Suzana, que mora em uma região de clima Semiárido, não possui cisterna e muito menos água encanada. A fonte mais próxima onde ela pega água para o consumo humano fica a 3km da sua casa e ela precisa dar cinco viagens por dia para abastecer a casa.
Em cada uma dessas viagens, ela carrega quatro galões, de 20 litros cada, que somam 70 litros. A jornada, que começa às 5h da manhã, segue por oito horas, cumpridas entre o período da manhã e tarde em um caminho com ladeiras.
O jumento de Suzana foi batizado de guerreiro, nome que revela o quanto ela reconhece a sua bravura ao carregar sob os lombos o líquido precioso que sustenta a sua família. Para ter o companheiro sempre forte e disposto para as viagens, a agricultora dedica atenção especial ao animal. “Ele está sempre bem alimentado, bebe muita água para ter força para trabalhar”, completa.