Por Andrei Koerner & Roberto Fregale Filho, para Carta Maior –
O CNJ mostra-se apenas como o pálido início de um processo de transformação, para outra agenda de democratização e abertura normativa do Judiciário.
Quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi criado, houve expectativas otimistas quanto às suas potencialidades para a construção da boa governança judicial. Nesse momento em que se celebra uma década do CNJ, é hora de analisar as tendências de sua composição e atuação. Pensamos que o CNJ constitui um primeiro e ainda tímido passo de mudanças e que seus limites estão inscritos no seu modelo em que falta a participação cidadã.
No início dos anos 1990, o problema da democratização do Poder Judiciário foi, desde logo, focado no tema do “controle externo” e os diversos aspectos do problema que mereceriam ser enfrentados e debatidos foram colocados de lado. Esse rumo resulta da confluência de dois processos políticos distintos. A Constituição de 1988 reconheceu ampla autonomia funcional, institucional e financeira para o Judiciário, sem a ampliação da participação, da transparência e controle democrático. Desde o Governo Geisel os militares buscaram instrumentalizar o Judiciário para a abertura controlada e, para isso, instituíram a centralização da direção e controles jurisprudenciais, políticos e disciplinares sobre os juízes. Em contraposição, o movimento associativo de juízes e outras carreiras jurídicas aliaram-se à oposição ao regime e suas demandas corporativas passaram a ser associadas à redemocratização. Isso assegurou a continuidade das formas de organização, das práticas e dos juízes que serviram ao regime. Eles tinham novas bases para rejeitar questionamentos e poderiam adaptar a instituição à sua maneira.
O contexto político a partir do governo Collor era de “crise de governabilidade e reforma neoliberal do Estado” associado à própria “crise do Judiciário”. Decisões judiciais de promoção de direitos baseadas na Constituição eram questionadas e o Judiciário era visto como leniente face aos escândalos de corrupção, que por vezes incluíam os próprios juízes. O modelo institucional existente não admitia questionamentos e as propostas de reforma, simplificadas como “controle externo”, apareciam como ameaças à autonomia do Judiciário e dos juízes.
Mas o tema da participação cidadã no Judiciário não é sinônimo de controle externo e nem é contrário à democratização. Ele é constitutivo das instituições representativas contemporâneas, nas quais, desde as revoluções burguesas rejeitava-se a magistratura togada como expressão do Antigo Regime e se demandava que os cidadãos fossem julgados pelos próprios pares, que se traduzia nas instituições do tribunal do júri e da justiça de paz. Nas últimas décadas, verificou-se a pluralização dos modelos institucionais e formas de participação para compatibilizar a profissionalização dos juízes com a democracia representativa.
No Brasil, a participação cidadã no Judiciário é coetânea à própria formação do Estado nacional, desde os conselhos locais da Colônia, os projetos de Constituição e o Código de Processo Criminal de 1832, mas foi bastante limitada pela reação conservadora. A justiça de paz e os jurados foram mantidos, mas passaram a ser identificados às fragilidades do Judiciário, propugnando-se o monopólio da jurisdição para os juristas e, a partir dos anos trinta, a participação no molde corporativista.
Sob qualquer ângulo que se adote, o Judiciário brasileiro é mais insulado e exclusivo de juristas em comparação com os seus congêneres em outros países. Neles, cidadãos leigos ou especialistas atuam como juízes não só em pequenas causas, mas em vários tribunais, inclusive de segunda instância. Para evitar a homogeneização dos magistrados, adotam-se várias formas de seleção, em várias fases da carreira, bem como reservas de vagas e representantes de comunidades, movimentos políticos ou associações profissionais. Outros pontos visam diminuir a competição interna entre os juízes e aumentar o tempo de sua permanência nas varas.
Os conselhos da magistratura foram moldados para assegurar a autonomia jurisdicional do juiz e evitar ingerências dos outros poderes. Eles concentram as funções de política judiciária (administração da justiça, governo dos juízes), mas não têm funções judiciais (segunda instância, controle do governo e do legislativo). No Judiciário brasileiro, ocorre o contrário, pois a direção do Judiciário concentra poderes e é controlada externamente apenas pelos efeitos de sua atuação.
A ADI nº 3.367, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), questionou a constitucionalidade do CNJ por suposta ofensa ao princípio da separação de poderes. A ação foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas ela consagrou o CNJ como órgão interno do Judiciário, de natureza exclusivamente administrativa, submetido ao controle jurisdicional do STF. A decisão abriu espaço para a magistratura capturar o CNJ e nele defender a constitucionalidade de sua atividade normativa, questionar o alcance de sua atividade disciplinar e manejar uma plêiade de procedimentos administrativos em seu favor.
Ao longo dos dez anos de existência do CNJ, sua composição tem sido predominantemente masculina. Na representação dos juízes, os vínculos com a cúpula revelam-se mais importantes do que qualquer traço de representação profissional. Nos últimos anos, os representantes da sociedade civil – eles mesmos bacharéis em direito – vieram de serviços técnicos de assessoria parlamentar e consultoria legislativa. Na prática, tudo isso significa que a sociedade civil não tem uma efetiva representação no CNJ.
A agenda do CNJ tem sido gerada endogenamente, com papel relevante da liderança exercida pelo seu Presidente, ele mesmo Presidente do STF. Seu processo decisório é prisioneiro da representação corporativa e centralizada da sua composição. O CNJ não exerce o controle externo sobre a magistratura e mantém intactas as estruturas de poder que se exercem no interior de cada tribunal. Suas decisões sobre os juízes revelam uma concepção burocrática, individual e isolada da função judicial, e criam obstáculos à sua participação em espaços associativos. O foco dos debates sobre o CNJ deslocou-se, ao longo da década, do controle externo e políticas judiciais para o controle disciplinar e a gestão administrativa.
A atuação do CNJ com foco e propósitos internos ao Judiciário é explicada por aqueles fatores de organização e representação. É a apropriação interna que empresta inteligibilidade à sua fala, mesmo quando ele parece falar para fora do Judiciário. Não se trata de uma fala construída de fora para dentro, mas de uma fala construída de dentro para dentro, ainda que mais atenta às demandas externas.
O CNJ mostra-se apenas como o pálido início de um necessário processo de transformação, para outra agenda de democratização e abertura normativa do Judiciário. Horizontalizar o CNJ, aproximando-o realmente da sociedade civil, é um primeiro passo para a ampliação da comunidade deliberativa, o que certamente ajudará os tribunais a darem conta da crescente accountability que lhes está sendo exigida. Na ausência de uma figura emblemática como o velho Sobral Pinto, que, em abril de 1984, no comício da Candelária, reafirmava que “todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”, é a voz coletiva e anônima da sociedade civil que deve contribuir para a construção de um Judiciário de proximidade, de um Judiciário transparente, enfim, de um Judiciário democrático.