Controles remotos e degeneração social

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Por Ulisses Capozzoli, Facebook  – 

Por falta de uso, alguns controles remotos ficaram danificados por ruptura de pilhas, e esse é o começo desta curtíssima história. Tenho de ir até a Santa Ifigênia, a meca de eletrônicos. Mas antes devo passar pela estação do metrô na praça Marechal Deodoro. O entorno da estação é um caos de corpos, precariamente protegidos por cobertores que, na maioria dos casos, se cobrem a cabeça, descobrem os pés. Pés nus, azulados pela temperatura baixa & a umidade que chegou com a chuva rala, num voo hesitante de mariposas.




Gente de todo tipo & todas as cores da pele: velhos & jovens. No rosto dos que despertaram, recostados à parede de cinza gelado, a expressão de ausência. Seus corpos estão ali, retidos pela gravidade. As mentes erram por dimensões desconhecidas. Talvez o que foram ou o que poderiam ser. Não o que são. Expressões vazias, bonecos de ventríloquos.

A Santa Ifigênia tem a sonoridade de mercado persa. O primeiro endereço não tem nada do que procuro. Mas sou achado, como tantos outros, por garotos que procuram fregueses para uma infinidade de lojas. Achei a primeira solução dos meus quatro controles avariados. Faltam outros três. O garoto, negro, magro, com surradas bermudas jeans e os dentes brancos como marfim, dá a dica de que preciso. Uma oficina menor que 2m X 2m no fundo direito do número 257. Dois garotos estão ali. Um é o técnico. O outro, amigo dele, sentado no banco deixado vazio pelo segundo técnico que, por alguma razão, não veio trabalhar.

Fico observando, com interesse camuflado pelos óculos escuros que amenizam minha fotofobia. O garoto maneja meia dúzia de equipamentos. E faz um reparo atrás do outro.

Sai o controle de um sujeito que hesitou entre recuperar & comprar um modelo novo & se decidiu por recuperar. E saiu, depois de um diagnóstico rápido, um amplificador de rádio. Agora é a minha vez. Tenho de esperar um pouco, mas sou compensado pelo que observo.

O garoto olha prá mim por uma fração de segundo e, gentil, pergunta:

─ Pouco uso, né? Essas pilhas não valem a pena ─ emenda com leve aceno negativo.

Cinco minutos depois o reparo está concluído. O amigo faz o teste num alto-falante de uns 5 cm² e coloca um selo de garantia: R$ 25,00 incluído o par de pilhas que não se desfaz como as que eu havia usado.

A Santa Ifigênia é uma metáfora do país. Uma criatividade infinita, uma habilidade cabocla que o “Primeiro Mundo” perdeu em sua ânsia de consumo. Um gênio, aquele garoto que repara um aparelho depois do outro. Cobra um quase nada e anexa um selo de garantia:

─ Se tiver qualquer problema, pode trazer de volta ─ assegura, agradecendo pela preferência. O menino de dentes de marfim que me trouxe ali está ansioso para receber sua diária:

─ Tenho de ir prá escola ─ justifica com o técnico pouco mais velho que ele.

─ O que você vai estudar? ─ pergunto:

─ Deus é quem sabe. Vou ser um administrador, talvez um policial. Ou um médico ─ e me olha com surpresa, como se fosse proibido desejar…

O sonho & desejo que abandonaram os corpos com que me deparei na praça Marechal. A memória me traz a primeira página da edição da véspera do “Valor Econômico”:

─ Temer transfere ajuste das contas ao próximo governo… ─ Que surpreendente…

O desemprego somado ao subemprego, que garante trocados a vendedores de balas, panos alvejados & limpadores de para-brisas somam quase 27 milhões de pessoas.

As cenas da praça Marechal e do “minhocão”, ao lado dela fundem-se numa imagem única. Uma profusão de destituídos. Mas na Praça 14 Bis, não longe dali, a situação, camuflada por uma tela verde estendida pela prefeitura é ainda pior.

Saio da Santa Ifigênia pensando se em algum planeta da Galáxia uma civilização, mais digna desse nome, pode ter debelado todo tipo de miséria entre seus membros. Sob a chuva, que voa como mariposas, meu corpo é o boneco de ventríloquo.

Meus controles remotos estão reparados. Mas os técnicos da Santa Ifigênia, nem o mais talentoso deles, pode reparar a avaria social que se mostra a cada esquina. Os técnicos em eletrônica, nem os melhores entre eles, são capazes de resolver essa situação.

Ela exige uma outra atitude, por parte do conjunto da sociedade. Um diagnóstico fácil. Mas sem garantia de que possa resultar em reparos. Em qualquer substituição de peças ou equipamentos inteiros incapazes de funcionar bem.

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