E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, traz para nós um gostoso bate papo com um livreiro, figura mítica que teima em nos vender sonhos, mesmo neste mundo de inteligências tão artificiais.
Ah, coincidência: o César enviou este texto justamente nesta semana, no 12 de março, em que se comemora o Dia da/o Bibliotecária/o. Portanto, este editor aproveita para publicar foto com a biblitotecária Soraia Alves, feita ontem na Ilha de Itaparica, terra do grande jornalista e escritor João Ubaldo Ribeiro.
“Pois é, certa vez eu estava a flanar por uma dessas feiras culturais etílicas e literárias quando topei com um livreiro amigo. Tão amigo que sabe que é quase uma obrigação de minha parte comprar com ele. Conversa veio, conversa foi. Eu não saí de mãos abanando, não senhor.
Eis um resumo do que conversamos:
Livreiro: Eu acho um tanto curioso o fato do símbolo do Kindle ser justamente uma criança lendo um livro sob a sombra de uma árvore. Curioso porque, talvez como tenha ocorrido com o telefone fixo, o livro físico tenha se tornado um mero ícone. Ler os livros físicos à vera já não sei se ocorre com a frequência que deveria. Um livro não precisa de carregador, é bom lembrar.
Eu mesmo:
Não, não sou saudosista. Embora eu também prefira livros físicos, tenho o meu velho Kindle ao alcance das mãos e dos olhos. E é bom poder aumentar a fonte de vez em quando. Facilita a leitura. Luis Fernando Veríssimo é quem estava certo. Eu não sei onde é que está esse texto dele, mas enfim, isso aqui é uma conversa, não uma palestra. O Veríssimo diz o seguinte: “Quando se é guri, as letras dos livros geralmente são enormes. Quando se é adulto, alguns livros têm umas letrinhas tão pequenas quanto as descrições dos efeitos colateriais das medicações que encontramos numa bula de remédios”. Fazer o quê? São as entrelinhas. Tem livro que eu não consigo ler nem de óculos.
Livreiro:
Livro físico é investimento. Tem cada livro que é uma joia, uma raridade. Não é à toa que no filme “El Conde”, o cara que faz o Pinochet, que é um vampiro, investe em livros raros. Livros que ele leu em primeira mão, vai ver. Que a ideia é boa é.
E quando se pensa em decoração, pensa logo numa boa estante de livros na sala, não é verdade? Em “Aquarius”, filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho, tem a mesma coisa de valorizar o livro, só que sem vampiro, mas com a Amazona, personagem da Sonia Braga. Ela tem livros e discos em casa. E defende sua posição com o argumento segundo o qual os livros e os discos têm história. Quer dizer, eles são a história.
Eu mesmo:
Eu sei, eu sei. Tem isso mesmo. É que nem a cômoda do mesmo filme, não é não? Se lembra da cena? Enquanto o pessoal fala da senhora com um discurso apaziguado e respeitável, ela se lembra de quanta sacanagem fez em cima daquela cômoda. É como o Oswald de Andrade disse: “Pra comer e pra foder, todos os homens estão preparados”. Ao que acrescento, todos: homens e mulheres e quem da raça humana que vier.
Livreiro (em pensamentos):
Ele vai ficar conversando comigo, vai me pedir desconto. Ele sabe mais ou menos o que está levando. Não age por impulso. Não é um amador. Não acha Harry Potter o máximo que a literatura pode alcançar. Quer literatura brasileira, quer cinema, quer Terry Eagleton, quer livro de arte, na certa tem uma predileção por Walter Benjamin em um eventual confronto com Adorno, quer jogar conversa fora. É um tanto solitário, tanto quanto eu. E daqui a pouco vai beber.
Eu mesmo (em pensamentos):
Já não sei onde vou colocar esses livros. Já não faço mais pesquisa, não tenho mais ambições acadêmicas nem veleidades literárias, compro livros apenas por prazer, um prazer doentio, uma espécie de sequestro do saber, alguma coisa assim. Com o advento do celular e das redes sociais, tenho lido cada vez menos; ler cada vez menos significa empilhar cada vez mais livros. Se duvidar acabo comprando de volta os livros que vendi.
Não tenho leitor de CDs, não tenho toda-discos, preciso duma Alexa pra encontrar as coisas no Spotify. Eu quero um apartamento maior para virar estúdio, sala de cinema, recanto, uísqueria, charutaria, lugar para guardar os besouros acondicionados em frascos de exame de urina ainda a etiquetar, estantes de livros até o teto, ultrapassando o teto, carecendo de escadas mirabolantes que vão dar no céu, essas coisas.
Livreiro:
Vai levar só esses hoje?
Eu mesmo:
Se rolar desconto levo mais. Tem jogo?
Livreiro:
Tem jogo? Pra tu sempre tem jogo.
Eu mesmo:
Então põe esses aqui também. No pix valeu?
Livreiro:
Valeu.
Eu mesmo:
Valeu.
Ainda falamos calorosamente sobre quem ia levar o Estadual, se Flamengo ou se Fluminense. Dali fui procurar o estande da cerveja artesanal da Three Little Indians. Tava caro. Acabei comprando a Brahma do isopor do seu Malaquias mesmo.
Enquanto isso, no reino da Perla de la Guanabara ainda é possivel se sentar à sombra de uma amendoeira ou de uma outra árvore para ler um livro ao som das folhas.”
Nota do Editor, continuando, ousadamente, o texto: Ou adquirir um livro na Livraria do Samuca (Samuel Aarão Reis, no Restaurante do Zeca’s, na pracinha das Garças, em Paquetá.
Lá, os livros nas estantes são frutos de doações e quem adquirir qualquer exemplar colocará o dinheiro num cofre de madeira, no mínimo 10 reais, que irá diretamente para o Projeto do Hely.
Assim, Além de se alimentar literalmente, nutrir a alma com um belo livro você ainda ajuda o Hely a judar mroadores em situação de rua. Um anjo sem asas, o Hely vive de fornecer café da manhã, roupas, dicas de como tirar documentos ou como o/a morador/a em situação de rua pode reencontrar a família e sair do relento de volta pra casa. Viram?
Assim coloca-se em prática frases atribuídas a Paulo Freire e Mario Quintana: “Os livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”
Foto: Jodedalva Queiroz, Soraia Alves, Emanoel Castro, Washington Araújo e Carmen Addário.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.