Copa do Mundo, a paixão quadrienal do professor Alfredo

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Apita o árbitro, abrem-se as cortinas e começa mais um espetáculo da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Nesta contenda, César escala novamente o professor Alfredo (seu heterônimo? às vezes acho que Alfredo está para César como Célia está para Layla, companheiras de ambos, na ordem) e sua paixão de quatro em quatro anos, a Copa do Mundo.

Vamos ao jogo, segure-se na poltrona!




“Se há um evento esportivo que tira o professor Alfredo de órbita? Sim, a Copa do Mundo. Tem sido assim desde a mais terra infância. Se ele, como professor de geografia, se interessa atualmente pelas transformações geopolíticas e pelo antropoceno, isso se deve a uma raiz ainda mais profunda: ele deve muito do que é à paixão que sente pelo esporte bretão.


Amores não são para serem correspondidos, mas para nos moldar o caráter. O que quer que a sentença signifique, na cabeça do Alfredo ela tem significado. Enquanto torcedor, Alfredo não é um Pachecão, por assim dizer. É racional demais para deixar de enxergar a grande constelação de coisas boas e ruins que se forma a partir da observação do futebol atual. Aliás, ele não escreve a palavra assim com “e”. Só escreve “futibol”. Quando indagado, diz que não acatou a mudança da palavra, que lhe foi imposta por jornalistas paulistas e vai tenteando até mudar o rumo da prosa com quem faz uma inversão de bola de uma lateral à outra.


Já há alguns meses, a pretexto de comprar figurinhas para os netos, Alfredo foi visto em diversas ocasiões em bancas de jornais e arredores à cata de raridades. É bem capaz de ter completado o álbum antes das crianças. Era um tal de “Você tem este aqui? E este? E aquele outro?”, entre outras perguntas. O bolso lateral das bermudas brancas de domingo fica estufado de tantas figurinhas, presas a um elástico de escritório.


Cabe à Célia, a mulher de Alfredo, de quando em quando dar um basta no espírito arteiro que se apodera da alma do seu marido de quatro em quatro anos. Alguém naquela casa tem que bancar o cabeça-de-área, o volante de contenção. Ela teme que ele, tão comedido, gaste o dinheiro dos remédios de pressão com figurinhas, como o fazem certas pessoas que, sendo viciadas em jogos de azar, põe em risco o orçamento doméstico.


Além das figurinhas, há também uma série de mandingas que Alfredo, logo ele, pratica para favorecer a seleção brasileira. Não se tem exata medida do que ele já fez, mas dizem que vai de garrafadas a grandes feitiçarias, inclusive em línguas estrangeiras.

Ninguém sabe, esclarecemos, porque em dias de jogo o Alfredo se tranca na oficina e dela só sai quinze minutos antes do pontapé inicial. Há também a maluquice de ver o jogo pela tevê mas de ouvi-lo pelo rádio, às vezes com o “egoísta”, que é, para quem não sabe, o verdadeiro elo perdido de todo fone de ouvido que se preze.
Que me perdoem os JBLs da vida.


Ah, coisas do Alfredo, gente, coisas do Alfredo. Para ele, Pelé é Deus e filho de Deus. Ou seja, para ele, Deus não é só brasileiro, mas também negro e escreve com as pernas tortas que nem Mané Garrincha.


Os demais craques, os que vieram e os que virão, com o devido respeito, são, quando muito, arcanjos bons de bola, Maradona entre eles, com suas peraltices, como aquela impagável do gol de mão. São imortais, mas não são Deus.
E para quem quiser saber, Alfredo é América, de flâmula e tudo.


Ele nunca levaria nenhum dos seus nem a uma igreja nem a um casario do baixo meretrício. Mas a estádios de futebol ele faz questão de levar como se fosse a um ato cívico, uma greve de professores daquelas, como se não fazem mais.

Não foi assim que ele conheceu a Célia? Sim, foi numa greve. Dá até vontade de chorar e não é por conta do gás lacrimogêneo. E ele não a levou para conhecer o estádio do Canindé, em São Paulo, só porque ela disse que a camisa do time paulista tinha um escudo encantador, que a lembrava das aulas de catecismo? “Dali até o Tietê fica tranchã”, disse ele a uma Célia que, na verdade, apenas queria testá-lo, para ver se ele era mesmo romântico como ele dizia ser.

No fundo, ironias à parte, o fato é que ela gostou mais ainda daquele fim de semana romântico à paulista quando ele, na mesma noite, a levou a uma autêntica cantina no Bixiga. Como esquecer daquele italiano com cara de punguista da Sicília que cantava a pleno pulmões uma canção das mais macarrônicas que ela ouviu na vida?


Ali Célia teve a epifania: tudo se encaixou; o amor deles era feito para durar, apesar dos desafios e desafinos: era uma cantina cantiga, e formoso como o escudo da Portuguesa. Ela nunca disse a Alfredo, uma vez que ele poderia ter uma crise de ciúmes. Mas, para ela, o Eusébio, o craque da seleção portuguesa de 66, era tão encantador quanto Pelé.

Tudo isso que foi dito acima pode parecer um tanto de maluquice. Ou de invencionice, se assim vocês, leitores, preferirem. Não somos nós que iremos contrariar, concordamos com os que porventura afirmarem que Alfredo é uma personagem um tanto excêntrica, e que talvez devesse figurar em um estudo psicanalítico ou psiquiátrico, pois possui o que talvez se chame de síndrome futebolística intermitente.


Ou seja, talvez ele não bata mesmo bem das bolas. Entretanto, bola pra frente. Como em muitas partidas, a melhor parte chega no final. Iremos fazer uma inconfidência: o Alfredo refaz os jogos da seleção brasileira na mesa de botão. Quando muitos preferem o videoteipe ou a reprise, ele refaz os jogos à sua maneira, um a um, dando geralmente um final feliz a nosso favor – contra a Alemanha em 2014, por exemplo, nós perdemos de três a um, isto porque um gol da Alemanha foi validado, apesar do claríssimo impedimento.


Em 1982, não deu. O Paolo Rossi fez mais um. Final do jogo: Itália 4 X 2. E Alfredo decidiu encerrar o jogo antes da virada que nunca viria.

São lindos os botões, de outros tempos, de madrepérola. E ele, Don Alfredon, só joga com duas seleções: a Brasileira e a do América, que é o time do seu coração, mais imbatível em jogos de ficção do que o Politheama em jogos oficiais.

E o que é mais, ele sempre arranja um jeito de mudar a tabela para enfrentar a seleção portuguesa, a de Eusébio, que ora é expulso, ora se contunde, ora fica no avião, ora perde o avião, às vezes não é nem convocado. Dá pena (ou dá perna!) ver o pobre do botão português de Ex-ébrio ou de coisa pior, quase que sendo posto de lado, quase sendo posto de volta na caixa de goiabada de madeira forrada de Contact que é onde Alfredo guarda os times pelos quais tem pouca estima.


Que venha a Sérvia. Que nos sirvam a cerva.”

Figurinhas da Copa de 70 nos guardados do professor Alfredo

Nota do editor, Washington: A expressão “Apita o árbitro, abrem-se as cortinas e começa o espetáculo” é do radialista Fiori Figliotti, da São Paulo da minha infância. Perdão pela intromissão, César/Alfredo.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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