Cordilheira de Amora II: o encantamento das coisas na visão de uma criança

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Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Nesta sessão, Cícero César nos leva ao cinema. Sobre o texto abaixo, este editor “pitaqueiro” (Washington) põe na conversa o poeta Manoel de Barros, que nasceu na região onde acontece o filme comentado por Cícero César: “Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.”

Leia o texto e veja o filme “Cordilheira de Amoras II”, abaixo.




“Para Pedro, Clarice, e Maria Helena.
“Cordilheira de Amora II”, curta-metragem brasileiro de 2017 dirigido por Jamille Fortunato, focaliza as fantasias de uma menina que tem o dom de transformar em brinquedo aquilo que foi descartado. A partir de tal lógica, os objetos se transformam: tijolos, empilhados, viram cadeiras; uma caixa de sabão em pó, televisão; a folha de uma palmeira, guarda-sol; e por aí vai. Em suma, no seu quintal, ela repõe mundos no mundo.

Ao ver o filme, reconheci imediatamente quem toparia aquelas brincadeiras todas: a minha filha, a Cecília, de oito anos. Ainda tentei acordá-la, mas neste dia ela foi dormir cedo, por ter corrido à beça no parque aqui perto de casa. Eu a levei, já não conseguia ver nada relacionado à escola na minha frente.


Eu tenho 51 anos e aparento a minha idade. Eu sou do tempo em que se publicavam no Jornal do Brasil fotos de crianças nordestinas brincando com ossos de gado.

Um dos textos que preciso reler é o do filósofo alemão Walter Benjamin sobre brinquedos. Como tudo deste autor, trata-se de um texto tão difícil para alguns quanto deve ser física quântica para outros. São as nossas habilidades, não é mesmo? Eu gosto de leituras difíceis, apesar de saber que muito provavelmente elas não irão me enriquecer materialmente falando.


Eu dediquei o texto ao neto da coordenadora pedagógica Marinalva; à filha da professora Renata Irene, menininha que foi nos visitar esta semana e se aclimatou tão bem à escola que disse à mamãe dela que gostaria de estudar ali; a filha do professor Billy. Mas é claro que a minha recomendação pode se estender para qualquer pai, para qualquer criança. Há falas ali de uma incrível sabedoria.


Meus ouvidos são tão malucos que eu reparei que a menininha de lindo sorriso não pronunciava direito os erres.
Quem precisa de terapia sou eu.


Por derradeiro, trata-se de um filme que foi rodado no Mato Grosso do Sul, um dos estados da federação que mais cresceram com o agronegócio. Entretanto, é preciso saber qual será o preço a pagar por tal avassalador progresso.

Não estão encurtando a infância das nossas crianças, isto é líquido e certo, mas não é tudo: com o desmatamento e a aculturação, em suma, com um progresso que pouco se lixa para o que é essencial na humanidade (proteger as crianças, os velhos e o ambiente em que se vive estão certamente entre o que há de essencial na vida, trata-se da perpetuação da espécie) estão acabando com populações inteiras de origem indígena em nome de um desenvolvimento que é para poucos.


PS: Cecília, minha filha, pediu de Papai Noel, além das miçangas para fazer pulseiras e colares, uma caixa de Lego. Ainda bem que ela não viu a menina brincando de Lego com aquelas pecinhas cor de barro cozido, isto é, com tijolos.
Afinal, as pecinhas de Lego não são chamadas de bricks, isto é, de tijolos?
Dia desses, é bem capaz de eu passar em uma loja de material de construção. Quem sabe, quem sabe. Quem decidirá é a Cecília.”

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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