Por Sara Lumbreras e Mario Castro Ponce, compartilhado de BBC –
Para conter a pandemia, é necessária apenas uma coisa: que durante o intervalo de tempo em que uma pessoa infectada pode transmitir a doença a outras pessoas, ela não o faça. Em teoria, essa medida é simples; mas no mundo real, é extremamente complexa de ser implementada.
Como alcançar este objetivo tão simples e ao mesmo tempo tão difícil? De muitas maneiras. Por exemplo, limitar os contatos entre as pessoas, como fizemos durante os confinamentos ou quarentenas. Também podemos reduzir a probabilidade de contágio nas interações existentes, por meio de máscaras e distanciamento físico entre as pessoas. Uma terceira via é a imunização, por vacinação ou pela chamada imunidade de grupo natural.
A imunidade de grupo é baseada na ideia (puramente estatística) de que, quando um número suficientemente elevado de pessoas supera uma doença, sua transmissão é interrompida. Isso ocorre porque cada paciente infectado encontra um número menor de pessoas suscetíveis de serem infectadas (porque muitas já estão imunes).
Essa estratégia é viável? Pode ser implementada regionalmente, nacionalmente ou mesmo globalmente?
A ideia não é nova. Desde o início da pandemia, alguns países se opõem a medidas para conter o contágio. Depois, o colapso da saúde da primeira onda fez com que eles mudassem de ideia.
Nas últimas semanas, porém, parece que a memória está começando a vacilar. Provavelmente por causa da ameaça de uma crise econômica devastadora, a hipótese da imunidade de grupo deliberada renasceu das cinzas.
Um grupo de especialistas, minoritário na comunidade acadêmica, publicou a Declaração do Grande Barrington em 4 de outubro, na qual rejeitam as medidas de confinamento e distanciamento por causa de suas consequências sociais e econômicas. Eles argumentam que a maior parte do mundo deveria “viver normalmente” até atingir a imunidade de grupo naturalmente.
E a fração da população mais vulnerável à doença deveria, segundo eles, se isolar durante esse período. Eles apelidaram essa estratégia de “proteção direcionada”.
Outro grupo de especialistas respondeu rapidamente ao documento publicando o Manifesto de John Snow, que leva o nome daquele que é considerado o pai da epidemiologia moderna. Para esses estudiosos, a busca deliberada pela imunidade de grupo natural é uma péssima ideia.
Os motivos são:
– Morreriam milhões de pessoas
A letalidade do vírus Sars-CoV-2, que causa a covid-19, ainda não foi determinada com certeza pela ciência, além da influência de variáveis como momento da pandemia e idade da população nos cálculos.
Ainda assim, estimativas conservadoras apontam que quase 0,6% dos infectados acabe morrendo. Ou seja, para atingir uma imunidade de rebanho no patamar de 60-70%, morreriam quase 200 mil pessoas só na Espanha. Isso sem mencionar as sequelas persistentes em milhares de pacientes que conseguiram sobreviver.
CRÉDITO,BBC
Além disso, o colapso sanitário por causa da alta porcentagem de doentes que demandariam internações hospitalares significaria que não sofreriam apenas os pacientes de covid-19, mas também de outras doenças que não poderiam receber a atenção devida.
Essa situação teria profundas consequências sociais e econômicas. Mesmo sem apelar para a imunidade de grupo, a mortalidade colateral por covid teria dimensões inaceitáveis.
Como se isso não bastasse, teríamos outro problema.
– Não sabemos se atingiríamos imunidade de grupo porque não temos clareza sobre como funciona a imunidade individual
Para que a imunidade de grupo seja alcançada, estima-se que precisaríamos de 60 a 70% da população imune ao mesmo tempo. Não apenas você não fica doente, mas também não pode transmitir o vírus para outras pessoas.
No entanto, ainda não sabemos como funciona a imunidade ou quanto tempo ela dura. Os anticorpos, que são a parte da resposta imune que mais estudamos, decaem após alguns meses, especialmente nos casos de infecções leves. Mas não sabemos o impacto disso na capacidade de defesa como um todo do corpo.
Além disso, sabemos que reinfecções são possíveis, o que pode ser um obstáculo intransponível para a obtenção de uma imunidade coletiva.
– A proteção direcionada não é apenas eticamente discutível: também apresenta dificuldades técnicas
É extremamente difícil isolar efetivamente os idosos e os grupos vulneráveis (eles não poderiam receber visitas e seriam condenados a viver na solidão? O que acontece com os funcionários dos asilos? Será que os isolaríamos também?).
Além disso, não é tão fácil definir a população vulnerável: muitos jovens, aparentemente sem patologias anteriores, sofreram casos graves de covid-19, e não temos como identificar essa população em risco: pode ser qualquer um.
De fato, levando em consideração os dados de mortes em excesso (o número de pessoas que morreu neste ano a mais do que a média histórica de anos anteriores), durante a primeira onda do novo coronavírus, 25% das mortes em excesso envolviam pessoas com menos de 65 anos.
– As estimativas de imunidade de grupo são baseadas em modelos matemáticos questionáveis
Normalmente, a imunidade de rebanho é calculada como (1-1 / R₀) x 100), onde R₀ é outro conceito que entrou em nossas vidas durante a pandemia: o chamado número reprodutivo básico (ou taxa de contágio, que é a quantidade de pessoas que podem contrair a doença a partir de alguém infectado).
Mas essas estimativas são baseadas em modelos simplificados que não apenas não permitem previsões precisas, como também ignoram o papel dos superespalhadores.
De tal forma que nem temos garantias de que, se 80% estiverem infectados, a epidemia vai parar e não vai afetar os 20% restantes.
Se esses pontos são tão claros, por que o apoio à estratégia de imunidade de grupo está ressurgindo?
Na maioria dos países, as pessoas vivem em um estado de restrição contínua ou à sombra de um novo confinamento em massa. Essa ameaça aumenta a impressão de que todo o esforço realizado nos meses anteriores foi em vão, além da angústia com empregos perdidos ou sob risco.
O desejo de recuperar a normalidade também é alimentado por uma economia prejudicada que impõe uma pressão crescente para buscar soluções alternativas.
No entanto, as consequências de deixar a pandemia evoluir de forma incontrolável seriam muito mais devastadoras que o efeito dessas medidas. Precisamos criar estratégias racionais que protejam tanto a saúde pública quanto a economia e o nosso estilo de vida.
Isso só pode ser feito através de um debate ético sobre a responsabilidade individual, um clima de convivência e comunidade, uma total transparência dos dados sobre a evolução da pandemia e os motivos que fundamentam as decisões tomadas pelas autoridades.
Resumindo: dados, ciência e prudência. Devemos selecionar as medidas que melhor atendem aos nossos objetivos, mas não adotar nenhuma seria a pior ideia de todas.
*Sara Lumbreras é professora e pesquisadora do Instituto de Pesquisa Tecnológica da Universidade Pontíficia Comillas e Mario Castro Ponce é professor e pesquisador da Escola Técnica Superior de Engenharia (Icai) da Universidade Pontíficia Comillas.
Esse artigo foi publicado originalmente no site The Conversation e é publicada aqui sob uma licença Creative Commons.
Leia a versão original, em espanhol, clicando aqui.