Coronavírus: para 100 mil pessoas, ficar em casa significa ficar nas ruas

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Por Yuri Fernandes | ods10, compartilhado de Projeto Colabora – 

Sem os cuidados básicos de higiene, dificuldades na alimentação devido ao isolamento social e entraves no acesso à saúde, população em situação de rua no Brasil vive cenário de vulnerabilidade e muitos questionamentos.

Preocupação é mundial: na Ucrânia, sem-teto usa máscara facial enquanto tricota sob o adesivo de informações sobre coronavírus na parede. Brasil começa a engatinhar em ações protetivas (Foto: Sergii Kharchenko/NurPhoto)

Ana Paula, 44 anos, tenta manter o ambiente onde dorme o mais organizado possível. Diz que tem mania de limpeza. Há dois meses, passa as noites em uma calçada da Rua Desembargador Izidro, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. Antes, habitava uma ocupação no mesmo bairro, mas devido a um incêndio se viu obrigada a viver em situação de rua, até o dia em que consiga reconstruir sua casa. Ao seu redor, no pequeno espaço localizado atrás de um quiosque de chaveiro, um colchão, balas que vende para conseguir uma renda e algumas doações, que estão ficando mais escassas. Em tempos da pandemia do coronavírus – que já contagiou centenas de pessoas no Brasil –  Ana Paula e mais de 100 mil pessoas no país que vivem a mesma condição estão entregues à própria sorte. A grande maioria não tem como colocar em prática os principais cuidados de prevenção recomendados pela OMS, como lavar as mãos com frequência, usar álcool em gel, evitar aproximação de outras pessoas e, o principal, ficar em casa. Afinal, eles já estão na deles.




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Ao pensar na vulnerabilidade dessa população, decido sair rapidamente da minha quarentena – iniciada na última segunda-feira, 16, para ir ao encontro de Ana Paula, que se abriga na mesma rua da minha casa. Meu objetivo é descobrir o que ela está sabendo sobre o coronavírus e, como, na medida do possível, está se cuidando. “Estou acompanhando, sim. Vejo pelas televisões dos bares. Nem sei se quero voltar para minha ocupação agora, lá tem muita gente e deve estar cheio de vírus”, responde. Mantendo a distância de 1,5m recomendada pela OMS, aproveito a oportunidade para entregar, além de alimentos, garrafas de água e itens de higiene pessoal. Ana conta, que diferentemente da maior parte dos seus colegas em situação de rua, consegue tomar banho todos os dias e lavar as mãos sempre que precisa. Mas Ana sabe que essa é uma realidade distante dos seus colegas. “Tenho um amigo aqui perto que deixa eu usar o banheiro do posto. Mas se não fosse ele, não sei não, viu? Tenho que agradecer. Tem gente aqui que fica uma semana sem banho”.

O principal problema é a falta de acesso ao sistema de saúde: para a atenção básica ou para o momento em que estamos vivendo. Depois, a dificuldade de estabelecer uma terapêutica adequada para essas pessoas que não sabem, geralmente, nem onde vão dormir. E outra: como você fala para higienizar as mãos frequentemente e corretamente?

Leonardo Flávio Nunes
Médico infectologista

Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), das 101,8 mil pessoas vivendo em situação de rua, 40% estão em municípios com mais de 900 mil habitantes, como é o caso do Rio de Janeiro e São Paulo: as duas cidades brasileiras com maior número de casos positivos para a Covid-19. Ambas já estão em situação de transmissão comunitária – quando não é mais possível saber a origem da infecção. Logo, nesse contexto, a população de rua, como qualquer outra, pode ser afetada mesmo que não tenha contato com pessoas que viajaram para o exterior. Em um cenário onde todas suposições devem ser analisadas para evitar um futuro preocupante, penso: e se uma pessoa em situação de rua for contaminada? Já que a ampla orientação é de isolamento social e quarentena domiciliar pelos órgãos oficiais de saúde, como lidar com essa questão junto a eles?

No Reino Unido, pessoas vivendo em situação de rua protestam: “E nós Boris, (Boris Johnson, primeiro-ministro da Grã-Bretanha) vamos participar do isolamento? Socorro!”. No outro cartaz: “Coronavirus fez as minhas doações desaparecerem”. (Foto: ISABEL INFANTES / AFP)

“Como você fala para uma população que não sabe que horas vai ter uma refeição, tomar uma medicação de forma regular? Só aí você já começa a entender o difícil contexto que eles estão inseridos em relação à saúde”, traz ao debate o médico infectologista Leonardo Flávio Nunes, que aponta as principais barreiras no atendimento adequado ao grupo. “O principal problema é a falta de acesso ao sistema de saúde: seja para a atenção básica ou para o momento em que estamos vivendo. Depois, a dificuldade de estabelecer uma terapêutica adequada para essas pessoas que não sabem, geralmente, nem onde vão dormir. E outra: como você fala para higienizar as mãos frequentemente e corretamente?”, lamenta o profissional.

O agravante da fome e a precarização de abrigos

“Eles sempre dizem que o domingo é o único dia em que passam fome, agora, eles vão ter 15 ou 20 domingos seguidos”, preocupa-se Michelle Montenegro, coordenadora do projeto “De Volta ao Lar”, do Rio, que resgata os laços familiares de pessoas em situação de rua promovendo o retorno para casa. Em seis meses de existência, mais de 60 voltaram ao convívio familiar em diferentes estados do país. A angústia de Michelle faz total sentido: com as pessoas cada vez mais evitando ficar nas ruas e bares e restaurantes de portas fechadas, como esse grupo vai se alimentar? Por conta da inquietação, as ações da iniciativa mudaram completamente.

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